'Na escola, seguimos escravos', diz professora que emocionou a Flip
Wellington Soares - Nova Escola - 03/08/2017
“Não sei o que me deu.” É assim que a professora aposentada Diva Guimarães explica a sua fala na Feira Literária Internacional de Paraty (Flip). Ela falou por exatos 13 minutos e 16 segundos, tempo suficiente para produzir um discurso magnético. Viralizou – e por bons motivos. A participação de Diva tocou em feridas abertas sobre o racismo no Brasil. A base das reflexões foram sua própria vida: dos tempos como estudante à experiência em sala de aula e o seu abrir de olhos sobre a situação dos negros no país.
Ao final do discurso emocionado, um apelo do ator e escritor Lázaro Ramos, que palestrava: “A gente precisa fazer um pacto de investir em Educação pública de qualidade”. Aplausos.
Em entrevista por telefone a NOVA ESCOLA, Diva reforça o discurso de Lázaro. Afirma que a falta de qualidade é ainda mais grave na abordagem de questões raciais. “São poucos os professores que conseguem contar a verdadeira história da África, do povo negro, dos indígenas.”
Na entrevista abaixo, ela relaciona a própria trajetória como aluna e professora da Educação Básica ao racismo no país e diz acreditar na Educação como principal motor de mudança.
NOVA ESCOLA O que motivou sua fala naquela sessão da Flip?
DIVA Não sei. Não foi pensado, mas foi a oportunidade que eu tive de falar sobre o meu sentimento e o sentimento das pessoas negras. Em Paraty, eu pude participar, pela primeira vez, de uma mesa com negros e que falasse sobre os negros. Durante a semana, participei de várias palestras que foram me tocando e, naquela mesa, quando começaram a falar sobre o racismo no passado de Portugal, eu pensava: não, isso não acontece em Portugal. Isso é o que acontece aqui, agora. Eu queria falar com o Lázaro depois porque ele mexeu muito com as minhas emoções, mas aquela foi a oportunidade que eu encontrei.
Na palestra você disse que somos escravizados até hoje. É uma colocação forte. O que você quis dizer?
DIVA São as oportunidades que nos dão que nos escravizam. É só perguntar para qualquer pessoa negra, ou de periferia, ou indígena. Quando era pequena, tive a oportunidade de fazer o primário em um colégio interno, mas eu era obrigada a trabalhar lá. Além disso, passava por situações que os alunos brancos de classe média não passavam: apanhava muito e evito até hoje as coisas que eu comia lá – uma sopa de lentilha com gosto de mofo e pão molhado no café com leite. No ginásio, passei a dar aulas em troca de moradia e de um tempo livre para estudar pela manhã. Nada mudou desde o período da escravidão, nem para mim nem para o mundo. Seguimos escravos.
Além dos maus-tratos, como foi a experiência escolar para você?
DIVA Estive sempre cercada de uma maioria de pessoas brancas. No colégio interno, todas as minhas colegas negras eram as pessoas que estavam ali por serem assistidas – estavam ali nas mesmas condições que eu. No ginásio e no magistério, tinha uma ou outra colega com a cor da pele como a minha. Nas aulas, aprendi o que estava nos livros. Não tinha nada de bom que a gente [os negros] fazia. Você não se via nas páginas escolares como negro. Você estudava a história dos Estados Unidos – às vezes a gente até tinha que decorar palavras em inglês –, estudava sobre a Europa, mas nada sobre a África. Tudo o que diziam era que a gente veio de lá escravizado para trabalhar no Brasil. Eu passava mal. Ficava revoltada quando falavam da escravidão porque as pessoas começavam a olhar para mim porque eu era a única negra.
Esse sentimento de revolta foi muito presente na sua vida?
DIVA Sim. Sempre briguei muito e fui muito revoltada… Não, eu era justiceira. Lembro de ler um livro sobre a vida do Lampião e ele se tornar meu ídolo. Ele foi um oprimido: viu toda a família morrer quando era criança porque roubaram as terrinhas deles, depois se salvou e cresceu e foi se vingar. Eu tinha vontade de me vingar também. Não tinha oportunidade, mas tinha vontade. Eu fiz até o plano de fugir para me juntar ao bando dele. Era uma revolta contra a discriminação – hoje a gente fala bonito, fala bullying! A minha vingança, felizmente, é a Educação. Você não precisa pegar em armas, com a Educação, com a leitura, você passa a saber quem você é, quais os seus direitos e seus deveres. A coisa muda. Pela arma ninguém muda ninguém.
Então a revolta passou?
DIVA Ah, ainda tem horas que eu tenho vontade de explodir. [ela gargalha e volta rápido ao tom sério que dominou a conversa] Quando eu vejo a matança de jovens negros… Não só de negros, mas das pessoas da periferia – em que a maioria é negra. Vão empurrando a gente cada vez mais para os cantos.
Se a escola não a preparou, como você criou consciência sobre o que é ser negro?
DIVA Eu aprendi pela leitura. Teve uma mãe de família para quem a minha mãe lavava roupas que me incentivou demais. Pelos livros, eu fui despertando. Li Darcy Ribeiro, que fala muito bem sobre a África, sobre os negros. O que me ajudou muito também os livros do Jorge Amado que são livros-denúncia. Tem outro que acho espetacular, que eu acho que são fantásticos é o José Mauro de Vasconcelos, autor de Meu Pé de Laranja Lima. Muitos livros são aparentemente romanceados, mas são denúncias! O Jorge Amado fez a denúncia da exploração sexual de crianças negras lá nos anos 1930 e 1940.
Como as escolas hoje podem fazer diferente?
DIVA Eu acredito principalmente na força da fase da pré-escola. O preconceito que as crianças têm, elas trazem da orientação de casa e vão se tornando assim, se nada é feito. E nada é feito, porque a maioria deste país é branca. Quer dizer, a maioria é negra, mas eles são mais bem protegidos – não vou nem dizer que eles têm mais força, porque se eles tivessem mais força a gente nem existiria.
Você disse que não mudamos até hoje. Você tem esperança de que mudemos no futuro?
DIVA Eu tenho esperança na Educação. A geração de hoje, em que muitos são cotistas, e os filhos deles vão ter outra cabeça. Muitos jovens vieram conversar comigo em Paraty. Muitos mesmo. A gente pensa que eles não estão ligados em tudo o que acontece, mas eles estão muito ligados. A mudança vem daí. Vai demorar um tempo, mas vai mudar.
Ao final do discurso emocionado, um apelo do ator e escritor Lázaro Ramos, que palestrava: “A gente precisa fazer um pacto de investir em Educação pública de qualidade”. Aplausos.
Em entrevista por telefone a NOVA ESCOLA, Diva reforça o discurso de Lázaro. Afirma que a falta de qualidade é ainda mais grave na abordagem de questões raciais. “São poucos os professores que conseguem contar a verdadeira história da África, do povo negro, dos indígenas.”
Na entrevista abaixo, ela relaciona a própria trajetória como aluna e professora da Educação Básica ao racismo no país e diz acreditar na Educação como principal motor de mudança.
NOVA ESCOLA O que motivou sua fala naquela sessão da Flip?
DIVA Não sei. Não foi pensado, mas foi a oportunidade que eu tive de falar sobre o meu sentimento e o sentimento das pessoas negras. Em Paraty, eu pude participar, pela primeira vez, de uma mesa com negros e que falasse sobre os negros. Durante a semana, participei de várias palestras que foram me tocando e, naquela mesa, quando começaram a falar sobre o racismo no passado de Portugal, eu pensava: não, isso não acontece em Portugal. Isso é o que acontece aqui, agora. Eu queria falar com o Lázaro depois porque ele mexeu muito com as minhas emoções, mas aquela foi a oportunidade que eu encontrei.
Na palestra você disse que somos escravizados até hoje. É uma colocação forte. O que você quis dizer?
DIVA São as oportunidades que nos dão que nos escravizam. É só perguntar para qualquer pessoa negra, ou de periferia, ou indígena. Quando era pequena, tive a oportunidade de fazer o primário em um colégio interno, mas eu era obrigada a trabalhar lá. Além disso, passava por situações que os alunos brancos de classe média não passavam: apanhava muito e evito até hoje as coisas que eu comia lá – uma sopa de lentilha com gosto de mofo e pão molhado no café com leite. No ginásio, passei a dar aulas em troca de moradia e de um tempo livre para estudar pela manhã. Nada mudou desde o período da escravidão, nem para mim nem para o mundo. Seguimos escravos.
Além dos maus-tratos, como foi a experiência escolar para você?
DIVA Estive sempre cercada de uma maioria de pessoas brancas. No colégio interno, todas as minhas colegas negras eram as pessoas que estavam ali por serem assistidas – estavam ali nas mesmas condições que eu. No ginásio e no magistério, tinha uma ou outra colega com a cor da pele como a minha. Nas aulas, aprendi o que estava nos livros. Não tinha nada de bom que a gente [os negros] fazia. Você não se via nas páginas escolares como negro. Você estudava a história dos Estados Unidos – às vezes a gente até tinha que decorar palavras em inglês –, estudava sobre a Europa, mas nada sobre a África. Tudo o que diziam era que a gente veio de lá escravizado para trabalhar no Brasil. Eu passava mal. Ficava revoltada quando falavam da escravidão porque as pessoas começavam a olhar para mim porque eu era a única negra.
Esse sentimento de revolta foi muito presente na sua vida?
DIVA Sim. Sempre briguei muito e fui muito revoltada… Não, eu era justiceira. Lembro de ler um livro sobre a vida do Lampião e ele se tornar meu ídolo. Ele foi um oprimido: viu toda a família morrer quando era criança porque roubaram as terrinhas deles, depois se salvou e cresceu e foi se vingar. Eu tinha vontade de me vingar também. Não tinha oportunidade, mas tinha vontade. Eu fiz até o plano de fugir para me juntar ao bando dele. Era uma revolta contra a discriminação – hoje a gente fala bonito, fala bullying! A minha vingança, felizmente, é a Educação. Você não precisa pegar em armas, com a Educação, com a leitura, você passa a saber quem você é, quais os seus direitos e seus deveres. A coisa muda. Pela arma ninguém muda ninguém.
Então a revolta passou?
DIVA Ah, ainda tem horas que eu tenho vontade de explodir. [ela gargalha e volta rápido ao tom sério que dominou a conversa] Quando eu vejo a matança de jovens negros… Não só de negros, mas das pessoas da periferia – em que a maioria é negra. Vão empurrando a gente cada vez mais para os cantos.
Se a escola não a preparou, como você criou consciência sobre o que é ser negro?
DIVA Eu aprendi pela leitura. Teve uma mãe de família para quem a minha mãe lavava roupas que me incentivou demais. Pelos livros, eu fui despertando. Li Darcy Ribeiro, que fala muito bem sobre a África, sobre os negros. O que me ajudou muito também os livros do Jorge Amado que são livros-denúncia. Tem outro que acho espetacular, que eu acho que são fantásticos é o José Mauro de Vasconcelos, autor de Meu Pé de Laranja Lima. Muitos livros são aparentemente romanceados, mas são denúncias! O Jorge Amado fez a denúncia da exploração sexual de crianças negras lá nos anos 1930 e 1940.
Como as escolas hoje podem fazer diferente?
DIVA Eu acredito principalmente na força da fase da pré-escola. O preconceito que as crianças têm, elas trazem da orientação de casa e vão se tornando assim, se nada é feito. E nada é feito, porque a maioria deste país é branca. Quer dizer, a maioria é negra, mas eles são mais bem protegidos – não vou nem dizer que eles têm mais força, porque se eles tivessem mais força a gente nem existiria.
Você disse que não mudamos até hoje. Você tem esperança de que mudemos no futuro?
DIVA Eu tenho esperança na Educação. A geração de hoje, em que muitos são cotistas, e os filhos deles vão ter outra cabeça. Muitos jovens vieram conversar comigo em Paraty. Muitos mesmo. A gente pensa que eles não estão ligados em tudo o que acontece, mas eles estão muito ligados. A mudança vem daí. Vai demorar um tempo, mas vai mudar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário