segunda-feira, 25 de abril de 2016

LER É UM GRANDE VERBO.

Ler é um grande verbo

Pablo Doberti
Ler é um grande verbo. Além disso, é um verbo com uma altíssima imagem positiva; seus detratores são computados em zero. É um verbo super elogiado, ainda que sinta que cada vez mais é menos alado.

Foi sendo sequestrado pelo dever e - por conseguinte - foi sendo alijado do prazer. É um grande verbo e um verbo que serve para tudo. Ler, hoje, quer dizer demasiadas coisas e muitas delas já não têm nada a ver umas com as outras. Vou refletir sobre isso.

Ler, hoje, é outra coisa - socialmente falando - do que era há 300 anos, 100, 50, 30 e 10 anos. Vou refletir também sobre isso. Ler é um grande verbo, social e intelectualmente falando. E não vou deixar de refletir, por último, sobre essa mística.

Ler é um verbo muito mais proclamado do que praticado; não é o único - eu sei -, mas é um desses. É facílimo o consenso ao redor da importância e do valor de ler, em quase qualquer âmbito; sobretudo se é um âmbito (como a escola, por exemplo) pouco leitor.

Ganha qualquer discussão se for respaldado no valor primordial da leitura. E seu valor é diretamente proporcional à quantidade de leitura; quanto mais lê, melhor é; não importa muito (aos finais leitores) o que lê. Ainda que também seja verdade que há leituras não consideradas como leituras, não sei bem porquê; que somam zero à conta do bom leitor.

A Bíblia é um exemplo; mas também qualquer coisa que se leia no Facebook e alguns autores de autoajuda (é difícil dizer que é leitor porque lê Depak Chopra); os manuais de adestramentos de cachorros, de como consertar coisas em casa etc.; os livros escolares, todos; as revistas do coração, de esportes ou de tecnologia; o Whatsapp.

Custa estabelecer-se - conceitualmente falando - nesse universo que parece contraditório. Sem dúvida, não sente que as pessoas em geral estejam confusas ou problematizadas com essas inconsistências; são vividas como se o conceito fosse ordenado e ilustre e nos empurrasse a uma ação única e reta.

Ler é um imperativo de grande consenso. A culpa das classes médias não leitoras e de suas instituições mais representativas (a escola, a universidade e a academia em geral, entre outras) tem levado a leitura ao lugar dos valores sociais puramente positivos e tem conferido esse halo de obrigatoriedade que vai lhe dando esse estilo tão de dedo indicador soberbo que hoje tem a leitura.

Deve ler; vê lendo. É que não há lugar psicologicamente mais cômodo que o de ponderar com segurança o que não pratica nem no escuro; o narcisismo se ordena porque o discurso moralizador o redime de si mesmo. Já que não leio, apregoo e exijo. Hipocrisia endêmica filha do eficiente esquema de dissociação com que nossa consciência gosta de trabalhar.

Ler deve ser um prazer, o que não quer dizer - pelo amor de Deus! - que talvez seja um prazer, senão que é obrigatório que seja. É esse ler - seja dito de passagem - que não admite as ambiguidades, nem os deslocamentos de sentido. É um ler taxativo e certo que nos apregoam até a exaustão. Ler é positivo.

Sempre achei estranho que o verbo ler viajasse tão comodamente separado de seu primo irmão de alma, o escrever. E mais, muitas vezes, sinto que os separaram deliberadamente. E quando se faz isso, ao ler, cai como uma lousa todo o peso da passividade, porque escrever é para arriscar. E um não serve ao outro.

A escola os desconectou e os mantém em pavilhões separados (como a seu momento fez com meninos e meninas, para que as pulsões deles não contaminassem as purezas delas, ou vice-versa). E a sociedade - antes ou depois - colheu a mesma semiologia.

Ler, que é como consumir, é obrigatório para todos; escrever é apenas para as elites geniais e eruditas. Não há nenhum vaso comunicante entre o que lê um livro e o que escreve; são "espécies" diferentes. E acreditamos nisso. Mas não é assim. Não correspondem a diferentes genótipos.

Dizem-nos que, na escola, nos ensinam a ler e a escrever juntos - o que chamamos de alfabetização -, mas não é verdade; a leitura, nos esmagam com ela, e a escrita, em geral e no geral, vamos esquecendo. Como se, por acaso, talvez, nos ensinassem apenas a ler literalmente e a redigir ordenadamente.

Levamos os livros à canonização e os não-leitores de livros à estigmatização. Todo livro merece ser lido e toda pessoa deve ser leitora de livros. Livro e erro, ou livro e fracasso, ou livro e inutilidade se tornaram para nós contradição em termos.

Não há livros maus; se eventualmente fosse mau - pensamos - esse livro teria sido abortado por essa instância socialmente sacralizada que é a edição. O juiz do livro é seu publicador; por isso o público logo apenas louva e canoniza. Mais passividade.

Entrar em uma livraria - deve ser por isso que fecham tantas, também - é entrar em um santuário de elite e isso é muito incômodo. Cada livro é uma verdade e um objeto de respeito, além de uma obrigação e, por conseguinte, uma culpa e uma dúvida. Entrar em uma livraria - podemos ver - é uma experiência abominável, no fundo; um exame e um espelho moral punitivo. Os livros devem ser lidos; e se não os lê, então, coitado de você.

Sem dúvida, cada vez mais, leio mais livros péssimos. E não creio que seja porque me equivoco, mais que antes, na escolha; creio que tem a ver com eles. Leio mais ou menos, para dizer a verdade, porque não consigo passar dos 30% em geral. Nunca em minha vida havia abandonado tantos livros pela metade como agora.

Quando são conceituais, porque muito rapidamente se fazem redundantes ou anedóticos. Basta ler sua introdução e um pouco mais (que, muitas vezes, compreende uma ideia essencial muito atraente), para ter-se relacionado com o melhor dele. Logo, se continua, não apenas perde tempo, senão, muitas vezes, se enche até do que valia a pena. Deixa de lado, então; mas, de novo: "Quem recebeu permissão para abandonar os livros, para lê-los pulando páginas ou para se entediar com eles?"

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Autorizar-se a deixar um livro é um árduo processo de pós-canonização, quase somente reservado para os deuses e para os outsiders.

Aguente-o, é o que chega a nós por todos os lados; inclusive, em sua capacidade de aguentar se coloca à prova sua verdadeira condição leitora. Leitor que se preze deve acabar de ler seus livros e guardá-los. E ninguém volta a esses muito maus escritores que fazem livros de 200 páginas - ou de 300, 400, ou mais - porque se a sua produção não tem certa grossura, corre o ignominioso risco de não acabar sendo um livro.

Então recheia e se perde e nos deixa com dúvidas. Logo a exigência cabe aos leitores. (Isso que digo se aplica igualmente aos livros escolares, só que com um nível de gravidade substancialmente maior e um dano social elevado à enésima potência.)

A ciência certa, também vou notando que a literatura se estende demais. Será por isso que os best-sellers todos iguais do tipo novela histórica ou novela documentada sempre chegam às mil páginas? Suspeito que o gênero prevê também essas magnitudes; se quer ser novela histórica deve trazer ao menos 50% da cantilena histórica, muito melhor se inclusive trouxer cronologia difamadora e sensacionalista; reluz mais sério e espesso, demonstra que não foi escrito entre a noite a manhã.

Creio que os livros, em geral, convivem mais com o ponto e vírgula; tudo para eles é sempre e contínuo. Não se suportam livros curtos; quase ninguém edita os de menos de 100 páginas. Extenuar o leitor é parte do modelo. E logo obrigá-lo a ler. (Ler ressoa tudo isso na escola?) Colocar o leitor na assimetria do autor por baixo é o movimento essencial; grande manobra de classe.

Mas ler é um grande verbo. Sabe sair favorecido de todas essas atmosferas e recuperar seu carisma sempre. Reaparece por fora da academia e da erudição e brota novamente nos espaços sociais mais insuspeitos. Camufla-se, contorna-se e flexibiliza-se para poder ser leitura, separado dos totens e dos rituais que o sequestraram.

Há leitura fora dos livros, da academia, da escola e das aulas de literatura ou linguagem; há leitura interrompida, crítica, farta, saltada e leitura totalmente interessada; há leitura em voz alta; há leitura para escrever e há muito boas leituras do escrito; há leitura íntima e secreta.

Há muito mais leitura voluntária que leitura obrigatória, ainda que continuem nos obrigando; e até mesmo há muito menos leitura do que poderia haver se nos deixassem de encher um pouco a paciência. Ler é como respirar e como algumas outras ações essenciais, as quais não combinam com a obrigação; não dá resultados e mata a alma. Não se pode - nem se deve - obrigar a gozar, como tampouco a amar.

Deixem-nos explorar nossos próprios gozos, sim? Como para tudo mais, também ler é ler para algo. Não há ler em si; é impostação, gesto vazio para impressionar alguém ou a si mesmo. É um onanismo que não recomendo.

A literatura que tem serventia é a que nos transporta a outra instância que a transcende e que nos levou a ler. Ler é uma estação na viagem. A leitura, como a erudição, se não progride a alguma produção, torna-se tóxicas e acaba intoxicando o sujeito. A leitura deve respirar outra coisa, escrever, pensar e criar, por exemplo. A leitura não é uma intencionalidade; deve haver uma intencionalidade prévia - um projeto - que nos levou a essa leitura e que logo segue a partir dela. Não é um fim. Não lemos porque seja genial, senão porque nos é útil para ser quem queremos ser.

Por isso digo que a leitura está mal localizada na escola. Porque a escola a concebe como fim e não se dá conta de que o que devemos fazer é colocá-la como meio de um processo (que é a construção de projetos) que - seja dito de passagem - a escola também não está sabendo levar adiante.

Ler - também - é uma destreza. Não falo de compreender (que é outra coisa e sobre a qual temos muitas dúvidas, com relação à maneira como a trabalhamos hoje), senão da técnica e da constância da leitura. Exige técnica e exige treinamento. Temos que saber ler para que a leitura possa ser um pilar na vida; e para saber ler, devemos nos preparar.

Faltam cursos disso, porque acreditamos que essa dimensão técnico-mecânica da leitura é trivial, mas eu creio que não é. É essencial, mesmo que não seja final. É condição necessária, mesmo que não seja suficiente. Neymar também - mesmo que não queira e que deteste - corre todos os dias e faz suas mil abdominais; senão, não seria Neymar.

(Brasil Post - 09/03/2016)
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Pablo Doberti é educador e diretor geral, UNOi

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