Livro tem que ser pensado como um todo, diz Catarina Sobral
Júlia Zuza - Revista Emília - 14/08/2017
Catarina Sobral nasceu em Coimbra, tem 27 anos e vive entre sua cidade natal e Lisboa. Formada em Design pela Universidade de Aveiro, estudou também em Barcelona, antes de emendar o mestrado em Ilustração no ISEC, na capital portuguesa. Talento novo e indiscutível do país, chamou a atenção na Feira de Bolonha de 2012 com Greve, seu livro de estreia – Menção Especial do Prémio Nacional de Ilustração de 2011 – em que os pontos resolvem não mais trabalhar, nem para as letras, costureiras ou qualquer instituição. Pontos de vista já não se viam mais também. É com humor e inteligência que a autora carrega suas obras de modo bastante original. Seu último livro, Achimpa!, prêmio na categoria de “Melhor Livro Infantojuvenil”, da Sociedade Portuguesa de Autores 2013, é sobre uma palavra que as pessoas descobriram que existia, mas não sabiam como usar. De boca em boca, ela ganha sentido e retrata com leveza e ironia um pouco do ridículo da sociedade contemporânea. As técnicas da ilustração são mistas e revelam pinturas, colagens, cores e texturas incríveis, num traço em que as proporções podem tudo! Segue a entrevista:
Júlia Zuza – Nos álbuns ilustrados, imagens e palavras estão diretamente relacionadas e, juntas, criam o sentido da obra. Em seus livros Achimpa (WMF Martins Fontes, 2013) e Tão tão grande (Orfeu Negro, 2016), pensando nas ilustrações e no texto, como cada linguagem constrói sua própria narrativa e como/onde estabelecem contato?
Catarina Sobral – O fato de lermos texto e imagem em simultâneo, no álbum ilustrado, modifica necessariamente o conteúdo de cada uma dessas linguagens. É mais fácil explicá-lo com outro exemplo, o meu livro O Meu Avô (Orfeu Mini, 2014), a relação entre palavras e imagens é quase sempre uma relação de contraponto: texto e ilustração dizem coisas parcialmente diferentes. O narrador verbal conta a rotina de apenas uma das personagens do livro (o avô), e o narrador visual mostra a rotina de duas personagens (o avô e o seu vizinho). As atividades diárias que são descritas pela imagem são sempre paralelas, e ao mesmo tempo, opostas. O vizinho escolhe sempre fazer atividades menos demoradas (andar de carro, comprar os legumes no supermercado, enviar um e-mail) e o avô prefere fazer atividades mais demoradas (andar a pé ou de bicicleta, cultivar os legumes, enviar uma carta).
Mas como o texto não descreve a rotina do vizinho, o sentido só se encontra completo quando se contrapõe texto e imagem. Por outro lado, se lidas com maior detalhe, as ilustrações podem levar ainda a outras conclusões: o avô diletante se distraiu ao ver um pássaro e está regando fora do canteiro, o vizinho passa o dia inteiro enviando e-mails. As incongruências entre as duas linguagens geram um ou vários sentidos. A interpretação pertence a cada leitor.
JZ – Os livros ilustrados trouxeram grandes modificações ao estatuto da literatura infantojuvenil, sobretudo em relação à materialidade da obra. O objeto também conta uma história? Qual o peso desse aspecto na literatura para crianças e jovens
CS – Sem dúvida que conta. Há inúmeros exemplos de livros que contam a história através do seu formato, do tipo de papel, da forma como são manuseados etc. O livro Clap, por exemplo, desenhado pela Madalena Matoso e publicado pela Planeta Tangerina, é performático: requer que se abra e feche o livro a cada virar de página. O Livro Inclinado, do Peter Newell, não existiria se não tivesse a forma de um paralelogramo. Os livros da Suzy Lee Espelho, Onda e Sombra, ou a série Shirley, de John Burningham usam a dobra do livro para distinguir o “real” da história e o ponto de vista subjetivo da personagem principal. E há dezenas de outros exemplos: Munari, Eric Carle, Kv?ta Pacovska, Herbauts, o genial Daqui Ninguém Passa, de Bernardo Carvalho e de Isabel Minhós Martins (Editora do Sesi), o esquisitíssimo Le Chacheur, escrito pelo Bernard Azimuth e ilustrado pelo Henri Galleron…
Para mim, é muito importante que o livro seja pensado como um todo. Os livros melhor sucedidos são os que levam em consideração as inter-relações entre elementos formais e conceituais, entre as preocupações temáticas e materiais. Não há fórmulas para coordenar as diferentes partes do livro álbum, mas é importante que se pensem nelas para enriquecer (e apenas se enriquecerem) o sentido geral do livro.
JZ – O seu trabalho também encontra extensão em narrativas visuais (livros sem palavras), como Vazio de 2014 (Editora 34). Como se dá a construção de uma história com uso exclusivo do código imagético? É necessário escrever antes um roteiro ou a ideia para o livro frutifica a partir de estímulos visuais?
CS – Não é necessário escrever nenhum texto, existe uma narração implícita. Na verdade não distingo um livro sem texto de um álbum ilustrado. Como se constrói? Com a montagem, com o layout, com o espaço branco, com um compromisso entre a autonomia e a dependência de cada ilustração em relação ao todo (repetições e ritmo), com escala, com composição (que ordena a leitura), com cor, com todas as ferramentas que a imagem tem para comunicar.
JZ – No processo de elaboração de um livro, a relação com os editores é uma das receitas fundamentais para a qualidade de uma obra. Como gerir os dois discursos para se manter a marca autoral do artista?
CS – Encontra-se sempre um compromisso entre as sugestões do editor (e do diretor de arte) e as nossas propostas. E esse compromisso é melhor do que as ideias iniciais de qualquer uma das partes. Outro dia alguém comentava comigo: as grandes editoras não têm editores. É um fato, muitos livros falham porque não há bons editores. É preciso reconhecer os anos de experiência e a cultura literária dos nossos editores e ter a humildade de perceber que estão, seguramente, sempre certos. Eu tenho muito bons editores.
JZ – A partir dos anos 2000 acontece um grande crescimento na produção de livros ilustrados em Portugal e importantes editoras voltadas para essa categoria surgem no cenário. Consegue ver algum tema ou estilo que perpassa grande parte dessas obras? Em sua opinião, que caminho a literatura portuguesa para a infância irá trilhar daqui para frente?
CS – Há uma certa escola, sem dúvida. Como há na ilustração espanhola, ou checa, ou iraniana. Como há um certo modo de ser português, ou espanhol, ou brasileiro, porque partilhamos o mesmo espaço e o mesmo tempo. Por isso não é estranho que se partilhem imagens ou metáforas. Acredito que vamos continuar a ser uma referência da ilustração mundial. Muitos visitam a Feira de Bolonha para ver os portugueses ou dizem que temos os melhores stands/catálogos da Feira. Acredito que vamos continuar a merecer esse reconhecimento.
JZ – Saindo um pouco do hemisfério norte e indo para a América do Sul, você acompanha o trabalho desenvolvido em países como Brasil, Chile, Colômbia? É possível pensar em alguma marca distintiva na criação desses ilustradores em relação a Portugal ou à Itália, por exemplo? E agora falando especificamente do Brasil, de qual/quais artista(s) você conhece mais o trabalho?
CS – Acompanho sim. Curiosamente estou respondendo a esta entrevista na véspera do meu voo de regresso para Portugal, depois de três semanas de trabalho na Colômbia e na Argentina. Há muitas vozes diferentes, mas também algumas marcas distintivas, sobretudo no que diz respeito à cultura indígena e negra que toda a América Latina herdou. Outras marcas distintivas vêm da influência das expressões particulares que o movimento modernista teve em cada país (penso no magnífico trabalho do Roger Mello). Admiro muito o Roger, e também a Mariana Zanetti, o Andrés Sandoval, o Fernando Vilela, a Jana Glatt.
Júlia Zuza – Nos álbuns ilustrados, imagens e palavras estão diretamente relacionadas e, juntas, criam o sentido da obra. Em seus livros Achimpa (WMF Martins Fontes, 2013) e Tão tão grande (Orfeu Negro, 2016), pensando nas ilustrações e no texto, como cada linguagem constrói sua própria narrativa e como/onde estabelecem contato?
Catarina Sobral – O fato de lermos texto e imagem em simultâneo, no álbum ilustrado, modifica necessariamente o conteúdo de cada uma dessas linguagens. É mais fácil explicá-lo com outro exemplo, o meu livro O Meu Avô (Orfeu Mini, 2014), a relação entre palavras e imagens é quase sempre uma relação de contraponto: texto e ilustração dizem coisas parcialmente diferentes. O narrador verbal conta a rotina de apenas uma das personagens do livro (o avô), e o narrador visual mostra a rotina de duas personagens (o avô e o seu vizinho). As atividades diárias que são descritas pela imagem são sempre paralelas, e ao mesmo tempo, opostas. O vizinho escolhe sempre fazer atividades menos demoradas (andar de carro, comprar os legumes no supermercado, enviar um e-mail) e o avô prefere fazer atividades mais demoradas (andar a pé ou de bicicleta, cultivar os legumes, enviar uma carta).
Mas como o texto não descreve a rotina do vizinho, o sentido só se encontra completo quando se contrapõe texto e imagem. Por outro lado, se lidas com maior detalhe, as ilustrações podem levar ainda a outras conclusões: o avô diletante se distraiu ao ver um pássaro e está regando fora do canteiro, o vizinho passa o dia inteiro enviando e-mails. As incongruências entre as duas linguagens geram um ou vários sentidos. A interpretação pertence a cada leitor.
JZ – Os livros ilustrados trouxeram grandes modificações ao estatuto da literatura infantojuvenil, sobretudo em relação à materialidade da obra. O objeto também conta uma história? Qual o peso desse aspecto na literatura para crianças e jovens
CS – Sem dúvida que conta. Há inúmeros exemplos de livros que contam a história através do seu formato, do tipo de papel, da forma como são manuseados etc. O livro Clap, por exemplo, desenhado pela Madalena Matoso e publicado pela Planeta Tangerina, é performático: requer que se abra e feche o livro a cada virar de página. O Livro Inclinado, do Peter Newell, não existiria se não tivesse a forma de um paralelogramo. Os livros da Suzy Lee Espelho, Onda e Sombra, ou a série Shirley, de John Burningham usam a dobra do livro para distinguir o “real” da história e o ponto de vista subjetivo da personagem principal. E há dezenas de outros exemplos: Munari, Eric Carle, Kv?ta Pacovska, Herbauts, o genial Daqui Ninguém Passa, de Bernardo Carvalho e de Isabel Minhós Martins (Editora do Sesi), o esquisitíssimo Le Chacheur, escrito pelo Bernard Azimuth e ilustrado pelo Henri Galleron…
Para mim, é muito importante que o livro seja pensado como um todo. Os livros melhor sucedidos são os que levam em consideração as inter-relações entre elementos formais e conceituais, entre as preocupações temáticas e materiais. Não há fórmulas para coordenar as diferentes partes do livro álbum, mas é importante que se pensem nelas para enriquecer (e apenas se enriquecerem) o sentido geral do livro.
JZ – O seu trabalho também encontra extensão em narrativas visuais (livros sem palavras), como Vazio de 2014 (Editora 34). Como se dá a construção de uma história com uso exclusivo do código imagético? É necessário escrever antes um roteiro ou a ideia para o livro frutifica a partir de estímulos visuais?
CS – Não é necessário escrever nenhum texto, existe uma narração implícita. Na verdade não distingo um livro sem texto de um álbum ilustrado. Como se constrói? Com a montagem, com o layout, com o espaço branco, com um compromisso entre a autonomia e a dependência de cada ilustração em relação ao todo (repetições e ritmo), com escala, com composição (que ordena a leitura), com cor, com todas as ferramentas que a imagem tem para comunicar.
JZ – No processo de elaboração de um livro, a relação com os editores é uma das receitas fundamentais para a qualidade de uma obra. Como gerir os dois discursos para se manter a marca autoral do artista?
CS – Encontra-se sempre um compromisso entre as sugestões do editor (e do diretor de arte) e as nossas propostas. E esse compromisso é melhor do que as ideias iniciais de qualquer uma das partes. Outro dia alguém comentava comigo: as grandes editoras não têm editores. É um fato, muitos livros falham porque não há bons editores. É preciso reconhecer os anos de experiência e a cultura literária dos nossos editores e ter a humildade de perceber que estão, seguramente, sempre certos. Eu tenho muito bons editores.
JZ – A partir dos anos 2000 acontece um grande crescimento na produção de livros ilustrados em Portugal e importantes editoras voltadas para essa categoria surgem no cenário. Consegue ver algum tema ou estilo que perpassa grande parte dessas obras? Em sua opinião, que caminho a literatura portuguesa para a infância irá trilhar daqui para frente?
CS – Há uma certa escola, sem dúvida. Como há na ilustração espanhola, ou checa, ou iraniana. Como há um certo modo de ser português, ou espanhol, ou brasileiro, porque partilhamos o mesmo espaço e o mesmo tempo. Por isso não é estranho que se partilhem imagens ou metáforas. Acredito que vamos continuar a ser uma referência da ilustração mundial. Muitos visitam a Feira de Bolonha para ver os portugueses ou dizem que temos os melhores stands/catálogos da Feira. Acredito que vamos continuar a merecer esse reconhecimento.
JZ – Saindo um pouco do hemisfério norte e indo para a América do Sul, você acompanha o trabalho desenvolvido em países como Brasil, Chile, Colômbia? É possível pensar em alguma marca distintiva na criação desses ilustradores em relação a Portugal ou à Itália, por exemplo? E agora falando especificamente do Brasil, de qual/quais artista(s) você conhece mais o trabalho?
CS – Acompanho sim. Curiosamente estou respondendo a esta entrevista na véspera do meu voo de regresso para Portugal, depois de três semanas de trabalho na Colômbia e na Argentina. Há muitas vozes diferentes, mas também algumas marcas distintivas, sobretudo no que diz respeito à cultura indígena e negra que toda a América Latina herdou. Outras marcas distintivas vêm da influência das expressões particulares que o movimento modernista teve em cada país (penso no magnífico trabalho do Roger Mello). Admiro muito o Roger, e também a Mariana Zanetti, o Andrés Sandoval, o Fernando Vilela, a Jana Glatt.
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