Mais recreio, menos sala de aula
Gostaria de instigá-los para um assunto pouco abordado nos debates teóricos sobre a escola: o recreio. Esse é um bom objeto para problematizar vários conceitos presentes na prática escolar. O recreio não pode ser visto apenas como espaço de descanso ou intervalo entre as aulas, ele tem um importante papel pedagógico. Pela lei brasileira[1], esse intervalo existe para suprir o direito trabalhista do professor – de intervalo de 15 minutos, ultrapassadas quatro horas de trabalho contínuo. Também é possível relacioná-lo ao pequeno intervalo dado aos trabalhadores nas fábricas para comer e descansar ou à hora de sol dos presidiários. Pedagogicamente, geralmente é dispensado como um importante espaço para o desenvolvimento da criança. Mas como diria o camarada Vigotski “é na brincadeira que a criança começa a regular seus desejos e impulsos, exercendo sua autonomia”.
Na escola, o recreio acaba sendo o único momento de interação totalmente livre para os estudantes e é o horário mais reduzido. O tempo é tão curto que as crianças o utilizam com a intensidade proporcional à que são tolhidas nos outros espaços. Assim, por causa da agitação das crianças (e por que não do caos?) frequentemente os educadores buscam organizar o recreio, propondo atividades, delimitando seu espaço e, em casos extremos, sugerindo extingui-lo devido à gritaria e brigas constantes.
Pouco se discute a validade de um espaço em que as crianças interajam sem a intervenção do professor, em que os grupos se formem por afinidade e não por idade e as atividades sejam escolhidas e reguladas pelos estudantes. No recreio é onde ocorrem os jogos e brincadeiras, conflitos, a troca de experiências e o convívio social.
O recreio e a importância da brincadeira não direcionada
Analisando mais a fundo no papel educativo da brincadeira e dos jogos, encontro em Vigotski argumentos demonstrando que a brincadeira é a linha guia para o desenvolvimento da criança pequena. Zoia Prestes, estudiosa e tradutora do Vigotski direto do russo, afirma que “é na brincadeira que a criança começa a regular seus desejos e impulsos, exercendo sua autonomia. A brincadeira de faz de conta é o verdadeiro espaço de liberdade da criança”.
Porém, essa liberdade é ilusória. Afinal, mesmo em uma brincadeira com uma situação imaginária, partilham-se de regras de comportamento. Por exemplo, na brincadeira de faz de conta a criança exerce o papel de mãe, assim, deve estar submetida às regras que ela absorveu da convivência e observações do que ela considera ser mãe, obedecer a essas regras nem sempre é agradável. Por isso, a ideia de que a brincadeira está vinculada à satisfação é incorreta. Por exemplo, os jogos esportivos e outros que resultam em ganhadores e perdedores são tingidos de um sentimento agudo de insatisfação quando o seu término é desfavorável para a criança.
Considerando o importante papel da brincadeira no desenvolvimento da criança, é comum encontrar pedagogos a realização de atividades lúdicas para superar a chatice que é a escola. Porém, como argumentado, a brincadeira não tem o princípio da ludicidade, da satisfação, da alegria; ela, inclusive, pode trazer sofrimento. Além disso, a brincadeira precisa ser um espaço livre e de regulação da criança. Nada pior que a tentativa de pedagogização da brincadeira. Para Zoia “a brincadeira não é instrumento para a educação moral. O comportamento moral, o que é certo e o que é errado, aprende-se pelo exemplo nas ações cotidianas” (Leia mais sobre isso aqui).
O recreio e o controle dos corpos
A lógica do recreio vai contra uma função básica ao qual a escola vem servindo: o controle das mentes e corpos. Não existe, se não no recreio, momentos livres de convivência, de discussões sobre atitudes e de apreensão de regras criadas pelos próprios estudantes. Ao impedir espaços de construção coletiva de regras e por não oportunizar o aprendizado pelo conflito, resta aos professores o uso de castigos, chantagens, punições e premiações como mecanismo de disciplina para realizar o seu trabalho. No entanto, essas ações são paliativas, provisórias e pouco duradouras.
O sistema disciplinar não é algo tão antigo, segundo Ariès (estudioso da história escolar e formação da criança), ao final da idade média os mestres começaram a se preocupar com o comportamento de seus alunos e, assim, em criar um sistema disciplinar. Esse regime disciplinar se baseava em três características: vigilância, delação e castigos corporais. Ele refletia um modo de organização da sociedade autoritária e hierarquizada (absolutista) da época. Já no início do século XIX, passa a ser importante “despertar na criança a responsabilidade do adulto, o sentido de sua dignidade”. Seria essa nova concepção de educação que triunfaria até os dias atuais.
Passa-se, então, a não mais se utilizar de práticas de castigo físicos humilhantes para manter a disciplina na escola. Cada vez mais, lança-se mão de ferramentas diversas para conduzir as condutas e esculpir os sujeitos. Para Danilo Camargo, em seu excelente trabalho sobre o abolicionismo escolar, “Mais do que impor repressivamente o medo e a obediência passiva, a escola procurou formar a personalidade do aluno através de formas positivas e de um trabalho interior do educando sobre si mesmo, visando à auto-regulação dos comportamentos”.
Foucault utiliza o termo governamentalidade, para explicar essa auto-regulação do indivíduo; esse termo “pode ser descrito como o esforço de criar sujeitos governáveis através de várias técnicas desenvolvidas de controle, normalização e moldagem das condutas das pessoas” (veja mais sobre esse assunto). Porém, no recreio os estudantes escapam do controle e dominação dos corpos e comportamentos, talvez por isso, não é visto como um momento pedagógico importante.
O que tiramos com isso?
As relações no recreio não possuem uma hierarquia. Nesse espaço a educação acontece de forma livre, entre pessoas que estabelecem o mesmo grau de interlocução. O recreio, se ampliado o seu tempo, permite uma vivência da coletividade e sua autoregulação, que fica prejudicada na sala de aula onde o principal regulador é o próprio professor.
Vigotski aponta que temos que abandonar a mesquinhez da infinita tutela sobre o aluno. Nada menos tutelar que deixar a criança viver com autonomia. Aprende a ser autônomo vivendo um ambiente livre, mas a autonomia se conquista na medida em que a responsabilidade vai sendo assumida. O querido Paulo Freire já dizia que “a liberdade vai preenchendo o espaço antes ‘habitado’ por sua dependência”.
Expandir o tempo do recreio é uma ação que coaduna com a perspectiva de educação emancipadora. Essa pequena ação pode resultar em uma ampliação das relações estudante-estudante; pode possibilitar a coletivização das responsabilidades e ampliar a convivência e vivência na escola. Não vamos mais banalizar o recreio nas escolas, seu tempo deve ser ampliado e sua redução repudiada, repense duas vezes antes de cortar o recreio dos estudantes como instrumento de disciplina!
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