sábado, 20 de fevereiro de 2016

O BRASIL DESPERDIÇA SEUS TALENTOS.

VIDA


O Brasil desperdiça seus talentos


As histórias de jovens e crianças numa cidade do interior de Minas Gerais revelam o maior desperdício de riqueza que o país comete: fechar os olhos para seus superdotados

FLÁVIA YURI OSHIMA
12/02/2016 - 21h47 - Atualizado 19/02/2016 13h03

Revista ÉPOCA - capa da edição 922 - Como o Brasil desperdiça seus talentos (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
Nicolas Franco,20 anos.Nunca conseguiu recursos extras na escola pública (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
Chegar até os irmãos Nicolas, de 20 anos, e Vinícius, de 16, foi fácil. O pai deles, Norberto Franco, pediu ajuda a Giovanni Eldasi (leia mais sobre a história dele aquiquando os meninos, ainda pequenos, começaram a ser discriminados por professores e colegas na escola. Os pais procuraram a direção da escola, aSecretaria de Educação da cidade e a Secretaria de Educação regional em busca de aulas e materiais extras para ajudá-los. Nunca conseguiram coisa alguma. “Está na lei que meus filhos têm o direito à educação. Ouvimos não de todos os lugares”, diz a mãe, Nilda Franco.
Vinícius Franco,16 anos.Sofre discriminação de colegas e de professores na escola desde o primeiro ano (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
Os relatos sobre as dificuldades que a espoleta Donatella Arcuri, de 10 anos, enfrenta na escola são idênticos aos do senhor Norberto. A diferença fundamental é que as dificuldades de Donatella se deram numa escola particular. Quando a avaliação indicou que ela deveria ser promovida para a série seguinte, a escola se esquivou da responsabilidade. “Se recusaram até a inscrevê-la para a Olimpíada de Matemática”, diz Fernanda Arcuri, educadora, mãe de Donatella.
Donatella de Vilhena Arcuri,10 anos.Mesmo depois dos testes ,a escola se recusou a passá-la para outro ano (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
O primeiro susto que Paulo e Márcia Buchholz tiveram com a filha Rafaella foi quando a menina tinha apenas 2 anos. A bebê apontou para um letreiro e começou a dizer “efe-a-erre-eme-a-ce-i-a”. A partir de então, a aprendizagem de Rafaella passou a se dar em saltos. Rafaella não foi adiantada na escola, mas recebe conteúdos extras durante a aula. “Nos anos em que era a única que sabia ler, ela sofria muito com os ciúmes dos amigos. Agora melhorou”, diz Márcia Buchholz. 
Rafaella Buchholz,8 anos.Leitura aos 2 anos e calculos aos 4 anos.Não foi para outra classe (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
Será que a água de Campanha tem algum elemento que afeta o cérebro das crianças? Difícil de acreditar. É possível que o que acontece lá se reproduza, em medidas proporcionais, nos demais5.560 municípios brasileiros. Uma evidência disso: o último dado divulgado pelo Inep, órgão que contabiliza as estatísticas oficiais de Educação, mostra que o país possui 13.308 superdotados. O dado é irrisório. A estimativa mais conservadora da Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que há 10 milhões de superdotados no Brasil, ou 5% da população. Esse percentual refere-se apenas aos superdotados intelectuais, com facilidade em raciocínio matemático ou línguas. Considerando todas as dimensões nas quais um superdotado pode sobressair, o percentual por país gira em torno de 10% da população. Ou seja, provavelmente há mais de 20 milhões de brasileiros talentosos invisíveis.
Superdotado ou alto habilidoso é aquele com capacidades de aprender muito acima do que é comum para sua idade e sem necessidade de estímulo. Até a década de 1960, o método mais comum usado para a identificação do superdotado era o teste de Q.I. Hoje, esse teste é uma parte de uma avaliação global que requer entrevistas, jogos lúdicos e observação do superdotado por educadores e médicos com formação e experiência na área.
Constituição brasileira impõe às escolas o dever de dar a cada criança superdotada a educação de que ela necessita, como conteúdos diferenciados e desafios maiores que a mantenham interessada. Como a experiência de Donatella, Rafaella, Vinícius e Nicolas mostra, a realidade ainda está vários pontos abaixo do que manda a lei. A desinformação e o preconceito contribuem para a falta de mobilização em torno da superdotação. O principal deles é a confusão que se faz entre o superdotado e o gênio. Ninguém é bom em tudo. O superdotado precisa do mesmo tipo de ajuda que qualquer criança de sua faixa etária precisa em todos os outros aspectos da vida: do social e afetivo ao cognitivo. A ideia do gênio alimenta a crença de que, independentemente do ambiente e das adversidades sociais, o superdotado conseguirá se sobressair em qualquer assunto sem risco. A história de Dirceu de Andrade  mostra a dimensão do engano.
descaso com os superdotados começa na formação dos professores. Os cursos de pedagogia não abordam o tema ou o fazem de forma superficial. O mesmo ocorre também nas faculdades de medicina. Nem mesmo em cursos de psiquiatria e de pediatria, áreas que obrigatoriamente deveriam dominar o assunto, ensina-se a lidar com a alta habilidade. A pediatra Paula Sakae cursou medicina na USP e nunca teve nenhum conteúdo relacionado a isso. “Só acordei para o assunto porque corri atrás de informações em centros especializados”, diz ela. Paula é mãe de dois meninos superdotados, de 10 e de 7 anos, e hoje é voluntária na Associação Paulista para Altas Habilidades e Superdotação.
A identificação do superdotado requer diferentes avaliações (Foto: Consbrad - Conselho Brasileiro de Superdotação)
Na medicina, a falta de informações é agravada pelas características que superdotados podem ter em comum com síndromes como deficit de atenção, a hiperatividade e até com casos de autismo (como o de Asperger). Por erro de diagnóstico, as crianças acabam sendo medicadas sem necessidade. “Entre 35% e 40% das crianças que chegaram à associação nos últimos três anos estavam tomando remédio”, diz Paula Sakae. “A medicação é um freio para a cabeça acelerada da criança. Ela é cômoda para pais e escolas que querem sossego”, diz a psicóloga Zenita Guenther, uma das maiores autoridades no Brasil em superdotação. “Mas a criança, internamente, pode vivenciar uma grande confusão ou permanecer dopada.” Outro erro comum de diagnóstico é confundir superdotados compenetrados e reflexivos com os portadores de algum tipo de autismo. É claro que as famílias não aceitam diagnósticos sem confirmação segura. Ainda assim, esse tipo de engano, até ser desfeito, gera estresse intenso nos pais e na criança.
O que ocorre com o superdotado, que desde muito cedo é visto pelo próprio professor como problemático? A ansiedade e o sentimento permanente de inadequação são os problemas mais comuns. “A criança superdotada precisa entender que existe um lugar no mundo para ela”, afirma Zenita Guenther. É muito comum superdotados esconderem suas habilidades para se dar bem no grupo. Algumas fazem isso conscientemente e conseguem dar vazão à criatividade de outras maneiras, como fez Giovanni (leia mais a partir da página 56). Outras correm o risco de se anular.
Por causa do sentimento de inadequação, a ocorrência de depressão em crianças de 7 anos é duas vezes maior em superdotados que naquelas com desempenho regular. Na vida adulta, é comum que o superdotado que não consegue dar vazão a sua criatividade recaia no abuso de álcool e outras drogas. Entre os altos habilidosos pobres, outro risco é a atração pelo mundo do crime. “A vontade do superdotado de constantemente aprender é uma necessidade permanente de desafios”, diz Zenita Guenther. “Essa é a vocação do mundo do crime.”
Em países mais avançados nos cuidados com a superdotação, como Estados Unidos, Japão e Israel, existe uma rede formada poreducadores, psicólogos, médicos e serviços sociais, cuja preocupação primeira é dar apoio às famílias. Trata-se mais de uma questão de cultura que de medidas governamentais. Os paisnormalmente não têm parâmetro de comparação para saber se os filhos são crianças espertas em nível normal ou não. O professor, desde a educação infantil, é quem deve sinalizar o trabalho que família e escola farão juntas. Nos Estados Unidos, a preocupação em torno da superdotação começou há mais de um século. Por lá, os questionamentos já estão em outra etapa. Um deles é o cuidado que se deve ter com o extremo oposto: a expectativa excessiva em cima do superdotado. Não é porque o superdotado é bom em matemática que tem a obrigação de trazer uma medalha Fields(considerada o Nobel de Matemática) para o país. Ele precisa ter as escolhas e as condições para realizá-las, não o peso das altas expectativas do meio. O Japão também se estrutura de forma similar e com o mesmo nível de eficiência. Mas seu programasuscita críticas ao redor do mundo por concentrar-se nos superdotados em matemática, ciências e física, áreas que o país considera estratégicas.
Israel é o país mais preparado nesse sentido. Por lá, a rede de proteção ao superdotado começa na infância. Uma criança brilhante de 5 anos, mas extremamente agitada, começa imediatamente a receber atendimento para transformar a agitação em ação criativa. Esse acompanhamento segue até a vida adulta. Se aos 7 anos ela tiver condições de ir para o 4o ano ou se aos 13 anos ela puder ir para a faculdade, o sistema de educação e o social se articularão para que isso aconteça. AUniversidade Ben-Gurion é famosa por receber crianças superdotadas.
Só em 2005, o Ministério da Educação do Brasil criou os Núcleos de Atividades de Altas Habilidades e Superdotados (Naahs). “Começou bem, mas, depois do início da operação, o MEC sumiu”, diz Liliane Bernardes Carneiro, psicóloga da Universidade de Brasília (UnB), que analisou os programas de superdotação públicos e particulares do país. Seu trabalho mostra que os núcleos só funcionam por causa do esforço individual de suas equipes. Outro problema é a falta de articulação entre secretarias de educação e assistência social. Sem isso, os núcleos permanecem dependentes apenas dos escassos recursos que possuem. Dos 13.308 alunos superdotados rastreados pelo Censo Escolar, apenas 4.300 são atendidos. A opção mais eficiente para as famílias de superdotados e escolas que queiram buscar ajuda são as instituições privadas e ONGs. Essas instituições não têm fins lucrativos, mas muitas precisam cobrar pelo atendimento para se manter.
Uma lei aprovada no fim de 2015 obrigará todas as escolas amanter um cadastro atualizado de seus alunos superdotados. No último Censo Escolar, não havia informação de matrículas de alunos superdotados em 4.258 municípios, 76,44% do total. Em607 deles (10,9%), a informação foi de apenas uma criança superdotada. Se a nova lei funcionar, será algo a comemorar. Mas, para que isso ocorra, a escola precisará aprender a enxergaro superdotado. E ela precisa de ajuda para isso. De outra forma, a ignorância e a desatenção continuarão transformando crianças-solução em crianças-problema. Para os indivíduos, isso pode desembocar em dramas pessoais como foi o caso de Dirceu de Andrade. Para o país, trata-se de um enorme desperdício de talento e, portanto, de crescimento e riqueza.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

VENDO ECOSPORT 2.0 CÔR PRETA

 VENDE-SE Veículo ECOSPORT 2.0 ANO 2007 FORD   -  CÔR PRETA KM: 160.000 R$35.000,00 Contato: 9.8848.1380

Popular Posts