'Racismo é questão de afeto', diz Lázaro Ramos sobre seu novo livro
Nina Finco - Época - 10/06/2017Lázaro Ramos é um dos atores brasileiros de maior expressão de sua geração. Na televisão, nos palcos e nos cinemas, ele encarnou o que chama de “brasileiro não oficial”: personagens que não existiram e não estão registrados na literatura. Enveredou também pelo caminho das biografias, quando interpretou o pastor batista e líder do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, Martin Luther King. Agora, ele próprio deixou de ser um brasileiro não oficial para uma existência nos livros. Em Na minha pele (editora Objetiva), ele compartilha suas experiências pessoais e convida o leitor a refletir sobre racismo e tomada de consciência.
ÉPOCA – Você tinha se imaginado como um escritor que abriria a Flip (Feira Literária de Paraty)?
Lázaro Ramos – Não era meu objetivo de vida ser escritor. Mas eu já escrevo desde minha adolescência. Eu não escrevia com a pretensão de que alguém lesse. Mas eu escrevia porque tinha ideias e pensamentos e porque a companhia do papel me dava um certo conforto. Fui ter coragem de mostrar o que escrevia, a primeira vez, em 2003. Em 2007, quando comecei isso aqui [o livro], eu tive a coragem de mostrar para uma editora. Quando fui ao encontro da Editora Objetiva, na verdade, eu fui para propor um livro infantil. E eles fizeram a provocação de lançar este livro. O livro demorou a sair porque tem uma certa complexidade na escrita. Até hoje ainda tem textos que eu não me arvoro a mostrar a ninguém, mas que estão lá guardadinhos. Minha escrita é mais por uma necessidade de comunicação.Sempre gostei muito da Flip, estou muito honrado de estar lá. No ano passado, eu fui como autor infantil à Flipinha, e foi maravilhoso. Fiquei enlouquecido com as rodas e com os debates. Este ano, será uma alegria poder abrir a Flip ao lado da Lilia Schwarcz e seu livro sobre o Lima Barreto e, depois, poder lançar meu livro. Estou ansioso e feliz.
ÉPOCA – Qual a sua relação com Lima Barreto, o homenageado deste ano?
Ramos – Eu li Lima Barreto na época da escola e, depois, me afastei. Agora, faz uns três anos, comecei a reler Lima Barreto. Foi uma experiência diferente. Quando eu li pela primeira vez não tinha maturidade suficiente para fazer todas as análises. Hoje, como leio fora do compromisso de escrever uma redação na aula de português, eu tenho visto como a gente precisa valorizar o Lima. Ele fala muito sobre nós, é um autor importantíssimo. Este resgate da obra dele está só no começo, é justo e merecido. Espero que venham outras ações.
ÉPOCA – Você interpretaria Lima Barreto no cinema?
Ramos – Eu adoraria! Vou ter o prazer de ler os textos lá na Flip. Eu me interesso por personagens históricos. É engraçado porque, durante uma época da minha vida, meu foco era fazer o “brasileiro não oficial”. Minha busca era por fazer personagens que não existiram, porque queria investigar o brasileiro que não estava nos livros. Depois de um tempo, deu uma vontade de fazer pessoas que existem. Acabei, agora, percebendo isso ao fazer Martin Luther King no teatro. Faço à minha maneira, não é uma imitação, mas tenho aprendido muito.
ÉPOCA – Sobre o que é este livro?
Ramos – Este livro aqui tem muito de memória. Tem alguns resgates que eu fui fazer e redescobri minha família e meus amigos. Acho importante relembrar e saber de onde a gente veio. Este livro não é uma biografia. Ele é uma conversa sobre formação de identidade.
ÉPOCA – Você está há muito tempo longe de sua terra natal. Como você passa adiante tudo o que aprendeu por lá?
Ramos – Isso já está em mim. Eu observo que não sou muito diferente de quem eu era quando estava em Salvador. Os amigos se mantêm, nos visitamos e conversamos constantemente. Eu vou muito à Bahia para me alimentar da minha origem e ver como caminharam as coisas por lá. Essa é minha essência. Claro que eu me modifico, mas essa essência do menino baiano do bairro do Garcia não se perde não. Como o processo de elaboração durou dez anos, este livro passou por várias fases. Houve uma época em que tentei escrever apenas em cima do que eu lembrava e de dados estatísticos do IBGE e do IPEA. Mas achei que o livro não tinha minha voz, não era aquilo que eu queria contar. Aí resolvi visitar tudo aquilo sobre o que queria falar, fui à Ilha de Paty de onde veio minha família, bati papo com meus amigos sobre assuntos que nunca vivemos e a gente conversou, fui conversar com os mais velhos da minha família. Aí foi um prazer. Os meus mais velhos contam uma história que é uma maravilha! Contaram histórias da ilha, histórias que eu não sabia e que não me contavam quando era criança. Tudo isso me alimentou para depois eu sentar e transformar num livro
ÉPOCA – Você e sua esposa, a atriz Taís Araújo, são considerados o Jay Z e a Beyoncé brasileiros. Como artistas negros de grande expressão no Brasil, você acredita ter uma função social a desempenhar?
Ramos – É bacana você ser considerado exemplo de família, profissional de qualidade e ser considerado um representante legítimo das pessoas. Não fomos nós que escolhemos. Foram as pessoas que nos colocaram nesse lugar. Claro que temos nosso empenho profissional e nos colocamos quando vamos falar publicamente. Isso é um desafio. Mas há o lado bom também: recebemos muito carinho e somos escutados – isso é um privilégio. E sabemos que tenis yna uma função de transformar as narrativas dos tempos em que vivemos. Mas não podemos ficar por aí Temos que sempre produzir mais coisas, renovar nossa linguagem e escolher nossos próximos trabalhos. Não podemos estacionar nos nossos benefícios. Tem que ser um motor para darmos o próximo passo.
ÉPOCA – No livro, você comenta como suas posições pessoais sobre questões estético-raciais, como asssumir os dreadlocks nos cabelos, influenciaram sua família a aceitar a negritude. Para o negro, qual a importância de assumir essa estética negra?
Ramos – Cada um tem a liberdade de se colocar esteticamente se quiser e quando quiser, se fizer sentido para ele mesmo. Acho que, durante muito tempo, uma estética mais negroide e um tipo de vestuário era considerado uma coisa menor e de menor beleza. A gente passa por um momento agora, o tal do empoderamento, que tem vários aspectos. Um deles é a estética, que é um movimento muito saudável. Algumas pessoas dizem assim: “Ah, eu tenho este cabelo aqui e acho legal usar ele assim. Eu vou onde eu quiser, com esse cabelo e vestido desta maneira”. Isso mexe com a nossa autoestima. A gente passa a se considerar possível e potente. Às vezes, parece que é uma coisa só simbólica, mas não é não. Afeta muito a nossa maneira de se colocar no mundo e diz a maneira como a gente quer ser visto. Mas isso não deve ser um padrão para as pessoas. Só pra quem fizer sentido.
ÉPOCA – No livro, nota-se que você tomou cuidado em abordar a questão da raça. Por quê?
Ramos – Eu vou devagarinho, porque quero provocar uma conversa. Não quero arrotar uma verdade e perder o ouvido de quem está conversando comigo. Eu acho esse assunto tão importante, que acho que tem que ser um assunto de todos nós. A gente tem que ter uma qualidade de conversa diferente de algumas que vemos por aí. Às vezes, as pessoas conversam apenas esperando a pausa do outro pra dizer a sua verdade. O que eu quero é escutar você que está falando comigo e ser capaz de produzir um novo olhar sobre o nosso assunto. É por isso que eu tenho essa cautela. Como comunicador, eu escolhi, neste momento da minha vida, provocar diálogos. Este livro é uma busca por um diálogo, contando histórias pelas quais eu espero que as pessoas tenham uma empatia, se envolvam na situação e, a partir daí, produzam um novo pensamento. Nem sempre, pra mim, é possível ser assim. Porque eu também sou ser humano e sou afetado por essas coisas. Às vezes, o meu discurso é mais incisivo, porque sinto que em algumas situações você precisa ser assim. Quando você é agredido, quando lhe tiram algum direito ou ultrapassam um limite. Mas, no geral, procuro provocar diálogos.
ÉPOCA – No livro, você diz que o racismo “é o crime perfeito que só a vítima vê”. O que você quer dizer com isso?
Ramos – O crime perfeito é aquele que só a vítima vê. E, às vezes, tem gente que vê e finge que não vê. É muito complexa essa questão. Porque, às vezes, quando uma pessoa se sente ofendida ou discriminada, e ela vai tentar expressar isso, há uma tentativa de silenciar. Ainda não conseguimos diagnosticar com exatidão o nosso racismo, porque tentam silenciar quem sofre com ele e tenta expressar. A resposta vem mais dura ainda e a gente não estabelece o diálogo. A gente precisa olhar para o racismo brasileiro, precisa diagnosticar e conversar sobre esse assunto. E, principalmente, a gente precisa saber que isso é um assunto que não diz interesse apenas ao negro. A gente quer uma nação mais igual para todos, onde a gente possa expressar o nosso afeto. A gente fica falando de racismo como se fosse uma demanda social, mas, pra mim, trata-se também de uma questão de afeto. Como eu te afeto, como você me afeta e, a partir daí, como a gente se relaciona.
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