Memorização tem lugar na sala de aula
Marcelo Viana
O filme `The Wall`, do diretor Alan Parker, lançado em 1982, é uma dramatização do álbum homônimo da banda de rock britânica Pink Floyd. Numa das cenas, o professor humilha um aluno que `se acha um poeta`. Descartando os escritos do menino como `absoluta porcaria`, o mestre ordena que a classe volte ao trabalho, repetindo com ele `Um acre é a área de um retângulo cujo comprimento é um furlongue e cuja largura é uma cadeia. Um acre é a área de um retângulo...`.
A cena, que já foi comum em muitos países, é uma caricatura mordaz da didática da memorização, que dispensa a compreensão e reduz o aluno a um mero receptor. A frase em si é incorreta: uma superfície com área igual a um acre não tem por que ser um retângulo, muito menos esse. Mas o ponto principal é que ela é incompreensível se você não conhece os conceitos e palavras: O que são furlongue e cadeia? E o que área tem que ver com comprimento e largura afinal? Assim, a `definição` é apenas uma fórmula vazia, sem sentido para aqueles que ela deveria instruir.
Foi assim que eu e meus coleguinhas aprendemos que 2 vezes 6 doze, 2 vezes 7 catorze etc, sem sabermos o que é `vezes`. Lembro a primeira ocasião em que vi uma tabuada no quadro-negro e pensei que a professora devia estar distraída: estava escrevendo o sinal de `mais` todo inclinado, chamando-o de `vezes` e, mais incrível ainda, errando quase todas as contas! Tudo isso com o maior carinho, pois a professora era a minha mãe.
Esses exageros conduziram, em décadas recentes, a uma grande desvalorização do papel da memória na aprendizagem da matemática. Não há dúvida de que a abordagem tradicional era errada e ineficiente, mas até onde devemos ir na eliminação da memorizacão do ambiente escolar? Essa é uma das questões abordadas no livro `Ten questions for mathematics teachers and how Pisa can help answer them` (Dez questões para professores de matemática e como o PISA pode ajudar a respondê-las, em tradução livre) publicado em 2016 pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
O Programa Internacional para Avaliação de Estudantes (Pisa é a sigla em inglês) é uma avaliação de desempenho em três áreas –leitura, matemática e ciências– realizada pela OCDE a cada três anos, com estudantes de 15 anos de mais de 60 países, incluindo o Brasil. Os testes não estão diretamente ligados aos currículos escolares. Pelo contrário, focam em tentar medir a capacidade do estudante para aplicar seu conhecimento e talento a problemas da vida real.
O Pisa não é isento de críticas. Em alguns países mais avançados, é acusado de criar metas (como ficar bem colocado no ranking do Pisa) que não são realmente prioritárias para o objetivo maior da educação. Acredito que essa crítica tem algum fundamento, mas que tem mais que ver com o uso inadequado e simplista dos resultados, e não dos fundamentos do programa em si.
No Brasil, o Pisa incomoda alguns segmentos do nosso ambiente escolar, talvez por escancarar o que todos sabemos: que o rei está nu e mudanças estruturais são necessárias e urgentes. Entre outras, já ouvi de um educador que `os resultados não se aplicam ao Brasil, pois não treinamos nossos alunos para resolver problemas`. Com o perdão da pergunta, treinamos para que mesmo?
Um dos méritos de programas internacionais como o Pisa é fornecerem parâmetros de avaliação independentes, que não podem ser manipulados ao sabor das conveniências políticas locais. Outro ponto forte é a capacidade de gerar uma grande quantidade de dados sobre o panorama educacional que, se usados de maneira inteligente e ponderada –indo além do imediatismo e apelo midiático dos rankings de países–, podem orientar, sim, todos os atores da questão educacional: autoridades, escolas, professores e famílias.
É isso a que se propõe fazer o livro que mencionei: a partir de dados do Pisa 2012, oferece respostas a dez perguntas de interesse para professores de matemática em qualquer país. Ele ainda não foi traduzido para o português (no entanto, confira Brasil no Pisa 2015), mas já contatamos a OCDE para expressar o interesse do Impa e da Sociedade Brasileira de Matemática em traduzi-lo. As repostas são sucintas, mas bem fundamentadas, e nem sempre o que seria de se esperar.
No Capítulo 4, `O que sabemos sobre memorização e aprendizagem de matemática?`, descobrimos que alunos com pior atitude em relação à matemática (ansiedade, baixa motivação e perseverança) são mais propensos a apelar para a memorização como única técnica de aprendizagem. E que isso acarreta pior desempenho em todos os níveis de dificuldade, embora a diferença seja pequena (apenas) quando se trata de resolver problemas muito fáceis e rotineiros.
A questão é que o modo como a memorização é usada faz diferença. Treinamento repetitivo de certas capacidades é sim uma técnica útil, desde que também abra caminho para a compreensão do assunto, pois ele libera a mente para tarefas superiores de raciocínio. E repetição não precisa ser sinônimo de tédio. Meu filho mais velho está muito empolgado para memorizar a tabuada, pois a escola soube transformar a coisa toda numa brincadeira. Como ele já está craque na tabuada do 8, acredita que os meninos vão ganhar `facinho` das meninas!
Talvez por isso, o grau de uso da memorização no ensino de matemática parece ter pouco que ver com a qualidade do sistema educacional do país. Ela é importante em países como Austrália, Jordânia e Holanda, e pouco usada na Dinamarca, Cazaquistão e México, entre outros. O Brasil está no grupo intermediário, perto da Finlândia e da Turquia, por exemplo.
Para terminar, qual foi a conta que a minha professora não `errou` na tabuada naquele dia? Usei essa lembrança muitos anos depois para resolver um problema na faculdade. Respostas são bem vindas pelo e-mail viana.folhasp@gmail.com.
(UOL EDUCAÇÃO – 07/07/2017)
Marcelo Viana é matemático e diretor-geral do Impa, é ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de France.
A cena, que já foi comum em muitos países, é uma caricatura mordaz da didática da memorização, que dispensa a compreensão e reduz o aluno a um mero receptor. A frase em si é incorreta: uma superfície com área igual a um acre não tem por que ser um retângulo, muito menos esse. Mas o ponto principal é que ela é incompreensível se você não conhece os conceitos e palavras: O que são furlongue e cadeia? E o que área tem que ver com comprimento e largura afinal? Assim, a `definição` é apenas uma fórmula vazia, sem sentido para aqueles que ela deveria instruir.
Foi assim que eu e meus coleguinhas aprendemos que 2 vezes 6 doze, 2 vezes 7 catorze etc, sem sabermos o que é `vezes`. Lembro a primeira ocasião em que vi uma tabuada no quadro-negro e pensei que a professora devia estar distraída: estava escrevendo o sinal de `mais` todo inclinado, chamando-o de `vezes` e, mais incrível ainda, errando quase todas as contas! Tudo isso com o maior carinho, pois a professora era a minha mãe.
Esses exageros conduziram, em décadas recentes, a uma grande desvalorização do papel da memória na aprendizagem da matemática. Não há dúvida de que a abordagem tradicional era errada e ineficiente, mas até onde devemos ir na eliminação da memorizacão do ambiente escolar? Essa é uma das questões abordadas no livro `Ten questions for mathematics teachers and how Pisa can help answer them` (Dez questões para professores de matemática e como o PISA pode ajudar a respondê-las, em tradução livre) publicado em 2016 pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
O Programa Internacional para Avaliação de Estudantes (Pisa é a sigla em inglês) é uma avaliação de desempenho em três áreas –leitura, matemática e ciências– realizada pela OCDE a cada três anos, com estudantes de 15 anos de mais de 60 países, incluindo o Brasil. Os testes não estão diretamente ligados aos currículos escolares. Pelo contrário, focam em tentar medir a capacidade do estudante para aplicar seu conhecimento e talento a problemas da vida real.
O Pisa não é isento de críticas. Em alguns países mais avançados, é acusado de criar metas (como ficar bem colocado no ranking do Pisa) que não são realmente prioritárias para o objetivo maior da educação. Acredito que essa crítica tem algum fundamento, mas que tem mais que ver com o uso inadequado e simplista dos resultados, e não dos fundamentos do programa em si.
No Brasil, o Pisa incomoda alguns segmentos do nosso ambiente escolar, talvez por escancarar o que todos sabemos: que o rei está nu e mudanças estruturais são necessárias e urgentes. Entre outras, já ouvi de um educador que `os resultados não se aplicam ao Brasil, pois não treinamos nossos alunos para resolver problemas`. Com o perdão da pergunta, treinamos para que mesmo?
Um dos méritos de programas internacionais como o Pisa é fornecerem parâmetros de avaliação independentes, que não podem ser manipulados ao sabor das conveniências políticas locais. Outro ponto forte é a capacidade de gerar uma grande quantidade de dados sobre o panorama educacional que, se usados de maneira inteligente e ponderada –indo além do imediatismo e apelo midiático dos rankings de países–, podem orientar, sim, todos os atores da questão educacional: autoridades, escolas, professores e famílias.
É isso a que se propõe fazer o livro que mencionei: a partir de dados do Pisa 2012, oferece respostas a dez perguntas de interesse para professores de matemática em qualquer país. Ele ainda não foi traduzido para o português (no entanto, confira Brasil no Pisa 2015), mas já contatamos a OCDE para expressar o interesse do Impa e da Sociedade Brasileira de Matemática em traduzi-lo. As repostas são sucintas, mas bem fundamentadas, e nem sempre o que seria de se esperar.
No Capítulo 4, `O que sabemos sobre memorização e aprendizagem de matemática?`, descobrimos que alunos com pior atitude em relação à matemática (ansiedade, baixa motivação e perseverança) são mais propensos a apelar para a memorização como única técnica de aprendizagem. E que isso acarreta pior desempenho em todos os níveis de dificuldade, embora a diferença seja pequena (apenas) quando se trata de resolver problemas muito fáceis e rotineiros.
A questão é que o modo como a memorização é usada faz diferença. Treinamento repetitivo de certas capacidades é sim uma técnica útil, desde que também abra caminho para a compreensão do assunto, pois ele libera a mente para tarefas superiores de raciocínio. E repetição não precisa ser sinônimo de tédio. Meu filho mais velho está muito empolgado para memorizar a tabuada, pois a escola soube transformar a coisa toda numa brincadeira. Como ele já está craque na tabuada do 8, acredita que os meninos vão ganhar `facinho` das meninas!
Talvez por isso, o grau de uso da memorização no ensino de matemática parece ter pouco que ver com a qualidade do sistema educacional do país. Ela é importante em países como Austrália, Jordânia e Holanda, e pouco usada na Dinamarca, Cazaquistão e México, entre outros. O Brasil está no grupo intermediário, perto da Finlândia e da Turquia, por exemplo.
Para terminar, qual foi a conta que a minha professora não `errou` na tabuada naquele dia? Usei essa lembrança muitos anos depois para resolver um problema na faculdade. Respostas são bem vindas pelo e-mail viana.folhasp@gmail.com.
(UOL EDUCAÇÃO – 07/07/2017)
Marcelo Viana é matemático e diretor-geral do Impa, é ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de France.
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