Somos nossos próprios juízes - Opinião em Tópicos - Junho 2015
As fraudes do leite
Ouvi numa rádio aqui de Porto Alegre: “Essa turma presa pelas fraudes do leite deveria ser obrigada, todas as manhãs, na cadeia, a tomar café com leite misturado a insetos, coliformes fecais e todas as nojeiras que adicionaram ao nosso leite”. Referia-se a uma série de crimes descobertos por aqui, atribuídos a produtores e transportadores de leite.
Quem não se sentiria estimulado a apoiar a proposição daquele comunicador? Grita nos atávicos recônditos da alma da gente um sentimento de justiça que reclama sofra quem produziu um dano as mesmas consequências causadas por ele. Mas essa é a forma mais primária de solução de conflitos. Por milênios, funcionou assim. A pena tinha caráter exclusivamente retributivo: fez, tem que pagar, com a mesma moeda.
O humanismo abriu à justiça penal outras dimensões, começando por abolir as penas infamantes. Ao invés de retribuir o mal com outro mal da mesma natureza, cabe ao Estado inibir a prática do delito e buscar ressocializar o delinquente. Suprime-se sua liberdade, não a dignidade humana. O ressarcimento do dano também aparece como consequência natural da prática do delito. A própria prisão, em muitos casos, é substituída pela prestação de serviços comunitários.
Justiça divina?
Fiz essa breve digressão da evolução da pena para, então, perguntar: se, em nosso plano material, chegamos a esse estágio que entendemos mais civilizado, o mesmo não deveria acontecer na dimensão espiritual? Se somos, como dizia Kardec, uma mesma humanidade, encarnada ou desencarnada, não será normal que iguais princípios de respeito à dignidade vigorem no plano material e espiritual? Ou a pena, nos mundos imateriais, tem mera função retributiva?
Vasta literatura de presumível origem mediúnica nos transmite a ideia de que, no mundo espiritual, as penas são tão bárbaras como eram aqui em tempos recuados. É crível que, lá, espíritos raivosos e revoltados com as injustiças aqui sofridas sejam levados a práticas de vingança contra seus anteriores ofensores. O mundo espiritual, como o material, é plural, constituído de comunidades em diferenciados estágios de progresso moral. O que não consigo aceitar é que denominemos atos de vindita e de indignidade humana lá ocorridos como expressões da “justiça divina”. Para mim, movimentos humanistas como os nossos aproximam-se muito mais daquilo que possamos nominar como justiça de Deus.
Umbral espírita ou inferno cristão?
Situações descritas por aquele tipo de literatura mediúnica se referem a imposições de sofrimentos absolutamente desumanos, no chamado mundo espiritual. Quem os aplica e em nome de quem o faz? De Deus? Agora têm aparecido mensagens que falam em um tal “vale dos espíritas”. Nele, milhares de espíritos que, na última encarnação, conheceram a doutrina espírita, alguns, inclusive, se havendo tornado importantes dirigentes no movimento, estariam comendo o pão que o diabo amassou. Não seria de se duvidar lhes fosse servido, no dejejum, o leite com todas as porcarias que o comunicador gaúcho gostaria se dessem aos empresários safados responsáveis pela fraude do leite. Tudo isso porque não souberam se valer do conhecimento espírita para operaram em suas vidas uma mais ampla transformação moral.
Ou muito me engano ou as chamadas “zonas umbralinas” espíritas são, muitas vezes, verdadeiros infernos cristãos que fariam inveja a Dante na sua Divina Comédia.
Somos nossos próprios juízes
Aprendi com Allan Kardec que a encarnação é oportunidade de progresso dada pela natureza ao espírito na sua caminhada rumo à perfeição. A regra é que, em cada jornada terrena, avançamos um pouco em aprendizado e moralidade. A verdadeira justiça divina é tolerante e pacienciosa com nossas imperfeições. No mundo espiritual, com certeza, sofremos aos nos deparar com as oportunidades perdidas, e adquirimos maior amplitude de consciência para o exercício do autojulgamento retificador. Isso, por si só, já se constitui em eficiente consequência penal pelos erros cometidos.
Agora, se, aqui, tivermos mantido ideias retrógradas de vingança, egoísmo, orgulho, discriminação e desprezo aos naturais e legítimos direitos do ser humano, lá seremos atraídos para ambientes condizentes a esse atraso social e moral. Mas isso nada tem a ver com justiça divina. Cada espírito permanece exatamente no patamar construído por seu próprio psiquismo.
Está na hora de exorcizarmos da reflexão espírita um pouco da culpa judaico-cristã, substituindo-a por noções de responsabilidade.
(Coluna publicada nas edições de junho/2015 dos jornais "CCEPA Opinião", do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre, e "Abertura", do Instituto Cultural Kardecista de Santos).
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