Como venho fazendo, dirijo-me aos mortos, dado que os vivos parecem estar
surdos...
Carta para Florestan Fernandes
Eu sei, meu amigo, que pode parecer
inverossímil aquilo que te irei contar, mas crê ser a mais pura verdade.
Um governador de estado inaugurou uma escola
construída no Padrão Século XXI, que custou quase três milhões
(sic). Pouco tempo após a pompa
e circunstância da inauguração, um jovem aluno foi morto a
tiro dentro dessa (dita) escola modelo. A diretora disse que o rapaz tinha comportamento normal e boas
notas. O porteiro prestou depoimento: a
Polícia Militar vem, ajuda, mas quando eles saem os marginais voltam.
Acrescentou que o colégio tinha encomendado uma barreira de proteção em volta
do prédio onde os alunos estudam. Que um serralheiro colocaria as placas em
volta da escola, mas, antes de ficar
pronto, infelizmente aconteceu essa tragédia”, disse. E tranquilizou os
intranquilos, dizendo: a Polícia Militar
ficará na porta da escola entre os próximos 15 e 30 dias, até que o projeto de
segurança seja implantado.
Um superintendente da secretaria de educação averiguou as condições da
infraestrutura de segurança e, peremptoriamente, afirmou: um circuito de câmeras de monitoramento será
instalado ao redor de toda a escola. E a Polícia Militar, por sua
vez, informou que fará rondas. Porém, apesar das garantias dadas por quem pode
dá-las, poucos alunos apareceram na instituição na manhã seguinte. E uma mãe
decidiu mesmo tirar o filho daquela escola, porque se cansou de ouvir os relatos do menino, que afirmou ter testemunhado o
uso de drogas no local.
Culminando esta insana sequência de fatos, essa escola,
que era pública, se tornou uma instituição militar e, a acreditar na mídia,
pretende cobrar alguns reais pela matrícula, em mensalidade e uniforme. E os
estudantes terão que jurar a bandeira, usar obrigatoriamente o uniforme escolar
e respeitar uma rígida hierarquia (sic). A Secretaria de Educação admite
que algumas escolas vão ser administradas pela Polícia Militar. E a Secretaria
de Segurança Pública afirma que a medida foi tomada para diminuir a violência
escolar.
Diz a minha amiga Ely que pais e governo comemoraram o plano
de recuperação da qualidade da escola, através da colocação de policiais
militares formados em pedagogia, uma
solução retrógrada, talvez inconstitucional e desnecessária. Concordo com a
Ely. Quanta
ignorância a de pensar que se poderá acabar com a violência explícita com
recurso à violência simbólica, numa escola-caserna! Quero crer que seria melhor solução juntar ao
currículo de formação de professores disciplinas como: abordagem policial,
balística, biologia forense, ou introdução à criminalística. Aqui fica a
sugestão...
Caro Florestan, na minha provecta idade,
estava crente de que já tinha visto tudo, mas estava imbuído daquele engano de alma ledo e cego, que a fortuna
não deixa durar muito... Eis senão quando, este português, cioso da sua
herança cultural, encontrou mais uma razão para reagir: a ocupação das escolas pela PM começará no Colégio... Fernando Pessoa.
Por que não deixam o poeta
em sossego? Por que se calam os educadores brasileiros, permitindo que a poesia
e a pedagogia sejam vilipendiadas?
Quando passavas pelo DOPS,
sabias que o teu sentido de dignidade poderia ditar para ti o mesmo destino do
Herzog. Outro Fernando, o Azevedo, evitou que fosses torturado, mas foste
cassado pelo regime militar e preso. Valeu a pena? Diria o Fernando poeta que tudo vale apena, quando a alma não é pequena.
E o que não vale a pena é perder o dom da indignação.
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