O CULTIVO DA PAZ PELA TRANSFORMAÇÃO DA
EDUCAÇÃO
Cláudio Naranjo – do livro A PAZ COMO
CAMINHO – Dulce Magalhães (www.unipaz.org.br)
O tema deste artigo é a necessidade de prevenir
a violência através de uma educação voltada para o desenvolvimento de pessoas
saudáveis e felizes e, de forma mais ampla, para a superação da sociedade
patriarcal, que constituiu o obstáculo fundamental para isso. Seu principal
objetivo é o de interessar o público na transformação da educação tradicional em
outra que esteja a serviço do desenvolvimento pessoal da consciência –
indispensável à evolução social.
Fala-se muito da violência atual. Por um lado, porque o
mundo se tornou mais violento que nunca, mas também porque se começou a ter
consciência que desde o começo da civilização até mesmo a história foi violenta.
Por outro, porque a injustiça do sistema se torna mais aparente e interessa aos
opressores desarmar e pacificar os oprimidos. Curiosamente, entretanto, em uma
cultura que recebeu as influências de Marx e de Freud, já quase não se fala na
raiz psicológica principal da violência, que é o espírito explorador associado à
cobiça, à insatisfação crônica e à perda da empatia.
No Chile, quando eu era criança, circulava uma piada
atribuída a um personagem chamado D.Otto – um alemão cujos literalismo e
espírito sistemático o impediam de ver a realidade, transformando-o
ridiculamente num idiota. Nessa piada, contava-se a reação de D. Otto ao saber
que, quando da visita do namorado de sua filha na noite anterior, o jovem casal
tinha feito coisas indevidas no sofá do salão. D.Otto solucionou o problema de
maneira radical: vendeu o móvel em questão. A maneira como hoje se fala de
violência, sem se interessar pela pesquisa de para que serve, ou a que injustiça
se reage, parece análoga; quando os episódios de terrorismo infantil se tornam
cada vez mais freqüentes, suspeito que se queira ensinar as pessoas a não
olharem além da superfície das coisas e das aparências, como se se tratasse de
algo estranho e sem motivo, ou de um mero “problema da juventude” (como no filme
Elefante).
Meu propósito aqui não é tratar das raízes da
violência; entretanto, além de causas mais ou menos específicas, chamadas em
psicanálise de “oralidade agressiva”, simplesmente lembrarei que é preciso ter
em mente dois fatores universais: o escasso desenvolvimento psicoespiritual (ou
seja, a falta de saúde mental) e a condição patriarcal da sociedade; foi esta
que determinou que as tendências agressivas e competitivas do homem se expressem
na marcha dos acontecimentos coletivos muito mais do que a ternura ou a
cooperação, que se associam à maternidade e à mulher.
Se o que digo é verdade, deduz-se que se contribui para
a paz não só ajudando a saúde mental da sociedade, mas também orientando-a para
a transcendência de seu caráter patriarcal. Os que se preocupam com a violência,
e mais geralmente os que se ocupam com os milhares de problemas que afetam
coletivamente a sociedade, não ligam para estas coisas. Parece que insistem em
cuidar dos sintomas e não de sanar o mal a fundo. Não levam em conta o que já
dizia Erich Fromm, que “a destrutividade é a forma como cada um se volta contra
a sua incompletude”. Mas como é óbvio que o desleixo com o essencial não ajudou,
está na hora de a sociedade cuidar do subdesenvolvimento da consciência e de os
políticos, que a representam, darem a devida prioridade ao muito descurado
desenvolvimento integral da natureza – chave da felicidade e condição
indispensável para uma sociedade saudável.
Já que é óbvio que fomentar tais coisas através das
religiões, das escolas espirituais tradicionais ou da psicoterapia somente
conseguiriam chegar a uma minoria, para mim, a única forma de se contribuir
maciçamente para o desenvolvimento humano seria através da sua prevenção –
evitando, assim, as conseqüências sociais da psicopatologia. Isto, por sua vez,
somente poderia ser imaginável através da educação. Se o mundo é violento, é
porque a criança é assim e se se tem a educação que se tem, é principalmente
porque não se desenvolveu até hoje uma forma de educação que pudesse levar a
criança além da mentalidade patriarcal.
Pelo contrário, a educação patriarcal está dirigida
precisamente para a perpetuação da mentalidade tradicional e das habituais
formas de vida – cujas conseqüências agora se apresentam problemáticas.
Entretanto, assim como não se vê o próprio ponto cego, também não se vê a fraude
maciça que penetra no que se costuma chamar de “educar”, destinada
principalmente a passar nas provas e assim alcançar vantagens no mercado de
trabalho. Tudo o que se faz priva o educando da oportunidade do desenvolvimento
emocional, social e espiritual.
Então, nada mais promissor para a paz do mundo que uma
alternativa para a educação patriarcal que se conhece, através da qual se
pretende, arrogantemente, transmitir valores, sem perceber a transmissão de
pragas. Mas como ? Principalmente – venho propondo através de congressos de
educação, de livros e o repito aqui – através de uma educação “trifocal”,
voltada para o desenvolvimento harmônico dos três cérebros que se associam na
tríade do pensar, sentir e querer, como as três “pessoas interiores” (que
correspondem às da família nuclear de pai, mãe e filho). Não há dúvida de que a
educação tradicional ou patriarcal não só privilegia o intelecto, mas também se
volta sistematicamente contra a instintividade da natureza animal, aviltando-a e
dando origem à auto-repulsa sistemática, tão bem descrita pelo modelo freudiano
da mente. Segundo tal modelo, o “superego” de cada um se volta contra “isso” e
as ordens da cultura autoritária se opõem às ordens da Natureza. Além disso, é
mais claro, apesar de Rousseau e da retórica atual que gira em torno da
recuperação de valores, que a educação não somente não favorece o
desenvolvimento afetivo, mas também o posterga ou o perturba.
Fala-se bastante, hoje em dia, da educação integral ou
holística, e a Unesco proclama um ideal holístico quando reconhece a importância
de aprender, não somente a fazer e a aprender, mas a conviver e a ser.
Entretanto, parece imperar certa confusão entre a retórica e a realidade, algo
parecido com o que ocorre com a democracia no âmbito político. É precisamente a
crise da educação que prova a irrelevância e obsolescência do afã de transmitir,
principalmente a informação, quando os jovens necessitam de uma educação
que os ajude a crescer antes de tudo como seres humanos, em lugar de se lhes
impor um regime alienante.
Como seres tricerebrados – dotados do cérebro de
réptil, instintivo, do cérebro meio relacional, que se herda dos ancestrais
mamíferos, além do neocórtex propriamente humano, no qual se assenta o potencial
de sabedoria (ou demência) -, seria desejável que fôssemos educados como seres
completos, capazes de equilíbrio e sinergia entre as suas faculdades. Isto
implicaria incluir um aspecto interpessoal e afetivo nos futuros programas de
educação e também um elemento estimulador dirigido à liberação da
espontaneidade. Além disso, essa educação holística ou integradora deverá
ocupar-se daquilo que, sem ser pensamento, emoção ou volição, constitua seu
contexto: a consciência propriamente dita, ou o aspecto transpessoal da mente,
do qual depende a vitalidade dos valores e sem cujo desenvolvimento a vida perde
sentido. Mas como ?
Certamente isto vai requerer uma redefinição da
educação para levar em conta os elementos de autoconhecimento e aprendizagem
relacional etc., bem como a reforma curricular correspondente. Ora, dificilmente
se pode esperar muito de uma mudança que não passe por uma formação alternativa
de educadores, que permita que um certo quórum de mestres tenha acesso à
transformação e à saúde mental necessária para ensinar as disciplinas vivenciais
que deveriam integrar os futuros programas. Mais precisamente, será necessário
oferecer aos futuros professores e aos gestores da educação cursos e oficinas
suplementares nas áreas do autoconhecimento, das relações humanas e do cultivo
da consciência – e especialmente levar cursos semelhantes ao pessoal docente das
escolas.
Diante de tal proposta, é fácil perguntar se por acaso
existe um método para a formação dos professores dessas áreas que seja
suficientemente eficaz e seja economicamente possível de ser posto em prática,
pois propostas como a de recorrer às contribuições da Psicanálise, ao
Behaviorismo, aos cursos de Comunicação, de Psicodrama ou simplesmente de
Gestalt, apenas, ofereceriam uma cultura terapêutica superficial e não o nível
de transformação que os professores em questão necessitariam para se tornar
agentes de uma transmissão viva de valores. Por isso, é de grande importância
contar com um método comprovadamente eficaz, e ainda rápido, que se proponha
como alternativa para a formação de educadores. Ela viria a constituir algo como
uma “chave mestra” para essa transformação da educação, de modo que seja uma
atividade que venha a dar realidade à tão citada, mas apenas sonhada, proposta
da Unesco.
Por isso, quando respondi ao convite para escrever algo
para este volume, considerei que esta seria uma oportunidade não somente para
poder destacar a importância do desenvolvimento do potencial da educação
tragicamente desperdiçado, mas também para poder informar a respeito de um
método de formação de educadores. Este método já deu excelentes resultados nas
já mencionadas áreas que o mundo acadêmico até agora descuidou – desde o
autoconhecimento até a atenção ao nível profundo e transpessoal da mente.
Escrevi sobre a história e o conteúdo desse currículo,
que complementa a formação tradicional de professores, em meu livro “Cambiar
la Educación para Cambiar el Mundo” (Mudar a Educação para Mudar o Mundo).
Nele incluo os comentários de trinta professores que ensinam em diversas escolas
de educação do Chile e que foram convocados pelo Ministério de Educação para
fazerem a experiência desse programa vivencial. Aqui só direi que se trata de
algo que vem sendo aplicado em diversos países ao longo de muitos anos de
formação de terapeutas e que, depois de sua primeira aplicação no Chile, na
virada do milênio, despertou o interesse de educadores mexicanos, argentinos,
italianos e outros, e mais recentemente foi reconhecido pelo governo
catalão.
Já que este método – conhecido como programa SAT para o
“desenvolvimento pessoal e profissional” - resultou da evolução do meu trabalho
no decorrer dos últimos trinta anos, o meu entusiasmo poderia ser considerado
suspeito, particularmente agora, no momento histórico que poderia perfeitamente
ser chamado de “idade da propaganda e da comodificação”, quando até a Ciência se
coloca a serviço dos negócios e do poder. Não tenho provas de minha inocência,
de modo que a prova da verdade do que afirmo, ao anunciar que gerei (na verdade,
por acaso) um recurso de interesse público, deverá basear-se na avaliação de
seus futuros resultados. Entretanto, não há como duvidar; de fato, colaborei com
as diversas equipes docentes em seus sucessivos módulos. Da observação repetida
logo se percebe que a grande maioria dos participantes dos programas não somente
consegue conhecer-se melhor, como também melhorar as suas relações
interpessoais, além de adquirir uma notável capacidade de ajuda, que depende
mais de sua própria transformação que da aquisição de idéias ou
técnicas.
O formato do processo é o de três seminários
sucessivos, de dez dias de duração cada um, repetidos anualmente. Quem ler esta
afirmação pode-se perguntar como é possível rapidez e eficiência tão inauditas
num âmbito que não se limita às palavras, mas que também deixa muitos dizendo
que sua vida se divide em duas partes: antes e depois de tal experiência
!
A resposta, creio, está em parte nos novos recursos que
integram o programa, mas, principalmente, na forma como, através dele, se
combinam, de tal maneira que “o todo é mais que a soma das partes”.
O programa SAT é um método
específico de reparação da família intrapsíquica e, mais amplamente, das
relações interpessoais. Seus componentes são uma visão do “bom amor” como
equilíbrio entre compaixão, reverência e capacidade de satisfação, assim como
uma compreensão das formas do falso e degradado amor; a prática da observação
temporária do pensamento num contexto meditativo; a tomada de consciência do
corpo e do mundo emocional; a pesquisa vivencial da mente em repouso; uma nova
forma de teatro terapêutico; o cultivo da entrega através do movimento
espontâneo; a terapia Gestalt; a psicologia dos tipos de personalidade e um novo
laboratório de exercícios psicológicos. Através deles, as pessoas aprendem a
trabalhar a si mesmas, tendo o estímulo e o apoio das demais, de tal forma que o
grupo, em seu conjunto, se torna um sistema psicologicamente
auto-reparador.
Os resultados alcançados não podem ser atribuídos
unicamente à aplicação de um programa. É necessário uma escola viva: um
currículo assumido pelas equipes docentes de seus respectivos módulos, cuja
evolução pessoal e perícia acumulada através de muitos anos permitam a
realização de algo que não poderia ser bem executado por novatos a partir de
idéias e métodos aprendidos por observação ou através de livros.
Sinto-me como poderia sentir-se um camponês que, arando
o seu terreno, encontrou um tesouro, ou como o personagem do conto de fadas que
descobre as propriedades mágicas de uma planta que cresceu no pátio de sua casa.
Simplesmente quis partilhar, anos atrás, com minha mãe e com alguns amigos algo
do que havia alcançado ao entrar no que poderia chamar-se de a fase carismática
da minha vida. Meu trabalho logo despertou o interesse de muitos pesquisadores
em Berkeley, no início dos anos 70. Mais tarde, a improvisação daquela época me
serviu de base para os programas SAT – já descritos -, os quais, à medida que
foram evoluindo, tornaram-se cada vez mais breves e poderosos. Tais programas
começaram em resposta ao interesse de psicoterapeutas na Espanha, mas, com o
tempo, não só eles estavam interessados; havia terapeutas também de outros
países. Acudiram mais professores, até que, em parte por suas observações e em
parte porque com o passar dos anos entendo um pouco melhor da trágica condição
do mundo, achei que o fruto do trabalho da minha vida bem que poderia ser
suficiente para desencadear a transformação de que a educação tanto
necessita.
Tomara que estas palavras possam interessar aos
governos, aos administradores da educação, às universidades, aos colégios e às
escolas e os induzam a testar o programa SAT para que possam comprovar a verdade
do que foi descrito aqui, pois assim não somente responderiam adequadamente à
crise educacional, mas também começariam a contribuir para o nascimento de uma
geração mais sadia e sábia. Que as minhas palavras também possam chegar às
pessoas que têm a possibilidade de colaborar com o dinheiro que será necessário
para oferecer bolsas aos empobrecidos educadores e também tornem possível a
produção de programas e a materialização deste projeto, tendo em vista o
limitado orçamento educacional dos empobrecidos governos – cada vez mais
sujeitos à vontade do império transnacional do dinheiro.
Ficaria muito mais feliz se algum dia o meu pensamento
chegasse aos poderosos do império global, aos quais penso que, por justiça, mais
que a qualquer outro cabe financiar a transformação da sociedade – tão sofrida
com o resultado de suas decisões -, para que os jovens de hoje possam viver
amanhã em paz e amor e gerem formas de vida e instituições melhores que as da
civilização patriarcal em sua crise de obsolescência.
Resumo: A violência é um aspecto de uma
problemática complexa, cujo fundo está no subdesenvolvimento emocional; por
isso, a paz do mundo depende da possibilidade de prevenção da crescente
deterioração psicoespiritual. Chamo a atenção para o fato de que somente a
transformação da educação poderá levar ao êxito, e dou notícia de um método para
a necessária formação alternativa de educadores que tal transformação irá
requerer.
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