A MEMÓRIA EDUCACIONAL DE UM CAMPANHENSE - MINAS
GERAIS, SÉCULO XIX
Ana Cristina Pereira Lage
UNICAMP – Mestrado
3 -Cultura e Práticas Escolares
Este
trabalho tem por objetivo discutir alguns pontos referentes à história da
educação na cidade de Campanha (MG), através das memórias registradas no livro Minhas
Recordações, de Francisco de Paula Ferreira de Rezende, o qual narra
em dois capítulos da obra a sua passagem pela escola “pública” da referida
cidade. Segundo o autor, esta descrição seria de um “modo muito geral” e com
idéias “muito vagas” pois lembrava-se muito pouco desta época. O pouco que
fornece através de sua autobiografia, torna-se muito para a compreensão
da história da educação em Campanha na década de 40 do século XIX.
Tem-se
que levar em consideração que a referida obra trabalha com a memória de um
cidadão letrado do século XIX, uma pessoa que pertencia à elite local. Foi
escrito no final da vida do autor, mas somente publicado em 1944 pela Livraria
José Olimpio e, posteriormente, reeditado em 1987 pela Imprensa Oficial de Belo
Horizonte. A obra possui 54 capítulos onde narra a trajetória de vida do autor
desde o seu nascimento em 1832 até o momento da escrita do livro em 1887. Para
trabalhar com a referida obra enquanto documento histórico, torna-se necessário
analisar alguns pontos referentes ao tratamento das fontes autobiográficas e
também contrapô-la a outros documentos existentes acerca da História da
Educação em Campanha no período estudado.
As
autobiografias
As
fontes são produzidas em um determinado momento e com uma intencionalidade.
Elas contextualizam com o momento e não estão isentas de subjetividade. Cabe ao
historiador perceber o discurso presente nas fontes consultadas e definir quais
são as representações contidas no discurso. É necessário perceber quem, de
onde, para quem e por que fala. Somente através destas investigações
consegue-se captar algo do universo a ser pesquisado, pois, “ O tempo da
pesquisa é diferente do tempo vivido: não pretende reconstituí-lo, mas
reconstruí-lo.” ( REIS, 2000, p. 25)
O
gênero biográfico surgiu na França no final do século XVIII, devido à expansão
e à afirmação dos direitos individuais propostos pela Revolução Francesa. A
primeira obra neste gênero teria sido Confissões, de Rousseau , escrita
entre 1764-1770. o fortalecimento da idéia de “indivíduo” foi essencial para a
proliferação deste gênero.
Segundo Pereira ( 2000), existem três gêneros
distintos que têm em comum o fato de serem baseados na seqüência de vida
individual: seriam as biografias, as histórias de vida e as autobiografias. A
história de vida seria um relato de um narrador sobre a sua existência através
do tempo, com a intermediação de um pesquisador. A biografia seria a história
de um indivíduo redigida por outra pessoa. Já na autobiografia, o trabalho de
edição seria feito pelo próprio narrador.
A
obra de Ferreira de Rezende estaria portanto dentro do gênero autobiográfico,
onde o o indivíduo narra sua visão pessoal dos acontecimentos. Deve-se que
levar em consideração também que este indivíduo pode também considerado como um
espelho de seu tempo. Além disso, a autobiografia é uma tendência do próprio
sujeito de ordenar e dar racionalidade a seus atos e decisões passadas.
Minhas
Recordações é um texto escrito por um
indivíduo da elite campanhense e que narra acontecimentos relativos a esta
estrutura social. Principalmente até o século XIX, autobiografias e biografias
ficaram restritas às classes dominantes, já que estes eram os únicos indivíduos
letrados, constituindo assim um espaço de elaboração e reprodução de suas
formas próprias de vida.
O
autor propõe ordenar em uma seqüência linear os acontecimentos mais importantes
de sua existência, trabalha então com a sua memória. No caso aqui analisado,
quando Ferreira de Rezende narra a sua experiência educacional em sua infância
e adolescência, deve-se considerar o longo espaço de tempo entre os
acontecimentos (década de 40 do século XIX) e a escrita de suas impressões
(década de 80 do século XIX). Ele trabalha então com as suas recordações.
Para
Santos (2003) é preciso compreender que os indivíduos não armazenam uma
totalidade de experiências passadas. Ao lembrar um episódio vivenciado no
passado (memória episódica), o indivíduo reconstitui o que aconteceu, primeiro,
a partir de uma massa ativa de reações ou experiências do passado organizadas,
ou seja, a partir de uma estrutura já existente, como a linguagem, e de uma disposição
que ele tem para lembrar (que pode ser associada à memória-hábito), e, segundo,
a partir dos fragmentos que remanesceram da experiência vivenciada. A memória é
constituída a partir das narrativas do presente, no caso da obra analisada,
seria o olhar do autor no momento da escrita de sua obra acerca de um momento
passado. São os fragmentos do passado que ficaram em sua
memória.
No início de sua obra, Ferreira de Resende adverte e aponta os caminhos
possíveis para a utilização de sua obra enquanto fonte histórica:
Feito apenas de memória e um pouco às
pressas, este escrito pelo lado literário, nenhum mérito encerra. Nem,
encetando -o, outra foi minha intenção, do que a de deixá-lo como uma simples
lembrança para meus filhos.
A esta falta, porém, de mérito literário, este escrito
ainda reune outra grande desvantagem: a de parecer, a primeira vista, nada mais
ser que uma simples autobiografia que, pretensiosa talvez para muitos, há de
ser para todos o que ela realmente é – insulsa e sem cor e, ao mesmo tempo,
mais ou menos desconchavada. Entretanto, se o leitor, em vez de contentar-se,
como vulgarmente se diz, unicamente com a casaca, preferir o útil e o agradável
e se der ao trabalho de penetrar um pouco mais no âmago do que escrevi, há de
afinal reconhecer, que se aqui existe, com geito, uma tal ou qual
autobiografia, esta, entretanto, não passa de um fio apenas, de que a obra mais
ou menos precisava, ou de um simples pretexto apenas que muito de propósito
procurei, é certo, mas como o mais apropriado também, para que eu pudesse fazer
a descrição de alguns dos nossos costumes que ainda encontrei e que vão de dia
em dia se apagando .... ( Rezende, 1987, p. 35, grifo nosso)
A autobiografia torna-se um pretexto para narrar um
pouco sobre a cultura e os costumes dos lugares por onde passou o autor.
Partindo da utilização das autobiografias enquanto fonte histórica, deve-se
então levar em consideração as relações e dependências entre prática, teoria e
metodologia que produzem o conhecimento histórico. Mas este conhecimento só é
possível se forem consideradas as particularidades da autobiografia,
principalmene sobre a subjetividade do autor, pois este fala acerca da visão
que possui no momento da escrita de um tempo passado, utiliza – se de
sua memória que pode ser seletiva, diz apenas aquilo que quer dizer. Mas
qualquer documento escrito pode estar inserido neste grupo, pois eles dão
apenas uma versão dos acontecimentos passados.
...O documento não é qualquer coisa que fica por conta
do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de
forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto documento
permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente,
isto é, com pleno conhecimento de causa. ( LE GOFF, 1985, p. 103)
A
obra aqui analisada é um produto da sociedade campanhense do século XIX. Aponta
pistas e caminhos para o estudo desta mesma sociedade. É a partida através de
um relato particular para a compreensão de uma facção da sociedade. O
particular pode apontar caminhos para a compreensão do geral. Para Faria Filho
( 2002), as autobiografias são ainda pouco utilizadas pelos historiadores, mas
são fontes riquíssimas para compreender o cotidiano de uma determinada época:
Um dos aspectos ressaltados por Francisco de Paula, e
que aqui nos interessa recuperar, refere-se à escola primária frequentada por
ele em Campanha (MG), no início da década de 40. Dessa escola ele nos conta da
freqüêcia (“muito grande”) , da matrícula ( “ de cento e muitos meninos”), das
matérias de ensino, dos métodos de ensino, dos castigos, da Santa Luzia
(palmatória), do proprietário da cadeira e de seus vários professores
substitutos, entre muitos outros aspectos. ( FARIA FILHO, 2002, p. 142)
Pelos caminhos históricos de Campanha
A
cidade de Campanha foi conquistada em 1737, pelo Ouvidor-mor Cipriano José da
Rocha. Quando ele chegou no território, já encontrou um povoamento com cerca de
“3.000 homens brancos e 7.000 homens negros”. Eram paulistas que haviam se
instalado na região em busca de ouro, o qual era comercializado
clandestinamente. Com a chegada do Ouvidor-mor, este tomou posse do território
e tratou de construir a primeira capela e uma casa de fundição, dando o nome ao
local de “ Arraial de São Cipriano”. Em 1798, foi elevada à vila, passando a
ser denominada “ Vila da Campanha da Princesa da Beira”. Neste período, o seu
território abrangia quase todo o sul de Minas, fazendo limites com São João Del
Rey. Foi a 9ª. Vila elevada à cidade em Minas Gerais (1840).
Quando
Ferreira de Rezende iniciou os seus estudos, Campanha acabara de ser elevada à
condição de cidade, mostrando todo o seu prestígio na região sul – mineira.
Neste momento a cidade foi “retratada” através da seguinte litogravura:
Imagem
01
Embora
o período de exploração aurífera não tenha durado por muito tempo, a cidade
manteve-se muito ativa durante todo o século XIX, principalmente através da
produção agrícola e pecuária, além do comércio com o Rio de Janeiro e São
Paulo. O seu território era vastíssimo e as suas águas minerais eram procuradas
por diversas personalidades para diversos tipos de tratamentos.
Para
o autor do livro Minhas Recordações, o esgotamento do ouro e o fim da
escravidão contribuíram para o declínio econômico da cidade.
... O Brasil inteiro foi de repente surpreendido por
uma lei que passava em quatro ou seis dias e em que duas linhas declarava: que
no Brasil não havia mais escravidão; (...) ficara de repente, ou para melhor
dizer da noite para o dia, privado de seiscentos ou de oitocentos mil
trabalhadores que tinham feito ou que ainda faziam toda a sua fortuna; e isto
sem que para substituí-los nada se apresentasse; e a cada um o que apenas se
dizia era: Arranje-se como puder.(...)
A lei, pois, de 13 de maio de 1888 veio a ser para
mim, assim como o foi, e
ainda mais talvez, para quase todos os
lavradores, um golpe terribilíssimo. A minha fortuna que em 1885 eu havia
avaliado, segundo há pouco acabei de dizer, em cento e muitos contos; desceu
desde logo e por assim dizer, de um só golpe, a cerca de uns trinta contos de
réis.( REZENDE, 1987, p.464)
Soma-se
a isto a emancipação de vilas que pertenciam à jurisdição da cidade de Campanha
para conduzir a uma grave crise financeira. Mas o prestigio da cidade
manteve-se através da presença de cidadãos campanhenses na política nacional e
no fortalecimento de instâncias ligadas à religião Católica na cidade.
Descendente
de família portuguesa que havia se estabelecido em Campanha em meados do século
XVIII, Francisco de Paula Ferreira de Rezende foi o filho primogênito de uma
família pequena ( apenas 02 filhos sobreviventes de um total de 08 irmãos) e
muito poderosa na cidade. O sobrado no qual nasceu e viveu durante muitos anos
era um dos mais imponentes prédios da Rua Direita.
Ciêmcias
Jurídicas e sociais na Faculdade de Direito de São Paulo (1855). Devido às
influências políticas de sua família, logo foi nomeado Promotor Público em
Campanha (1856) e Juiz de órfãos do termo de Queluz. Foi Deputado da Assembléia
Legislativa de Minas Gerais (1864-1865) . Com a República, foi nomeado 3o.
Vice-Governador de Minas Gerais e também Ministro do Supremo Tribunal Federal.
Durante a sua vida, colaborou com diversos jornais de Minas Gerais e escreveu
também outros livros, mas o que interessa neste momento é resgatar as
impressões educacionais de sua infância e adolescência em Campanha, narradas em
sua obra Minhas Recordações.
Imagem 03
Impressões
educacionais
No
ano de 1831, é possível saber da instalação de uma Escola de Ensino Mútuo para
Primeiras Letras em Campanha, com mais de 100 alunos1. O método mútuo
ou Lancasteriano, difundiu-se no Brasil neste período, prevendo que a instrução
pública deveria ser um dever do Estado. Para contemplar um número maior de
alunos, com a carência de professores, a instrução era então dividida em graus,
levando em consideração a idade de cada aluno. Utilizavam-se discípulos mais
adiantados para auxiliar o professor no ensino dos alunos menores. Havia uma
grande sala repartida segundo as classes. Além disso, método combatia os
castigos físicos. Foi em uma escola de método mútuo que Ferreira de Resende
iniciou os seus estudos.
O
autor afirma nunca ter estudado em colégio algum, nem interno e nem externo.
Toda a sua educação foi feita em “escolas públicas” ou “consigo mesmo”. Este é,
aliás, um ponto sempre ressaltado por este autor, já que considerava as escolas
muito fracas e julgava necessário, então, aprender sozinho, sem o auxílio de
professores.
O
seu professor de Primeiras Letras na escola de Campanha chamava-se José
Antônio Mendes, advogado que tinha a particularidade de andar com muletas (
tinha uma das pernas amputadas), mas não tinha nenhum problema na locomoção e
em utilizar da palmatória, o que seria contrário aos princípios do método
mútuo:
... entretanto que ele sabia , quando lhe convinha,
caminhar com uma tal sutileza, que mal se podia ouvir o andar ou o batido das
muletas. E ai do menino que se fiava nesse batido traidor! Porque, quando menos
esperava, do corredor que vinha do interior da casa, o mestre fazia na porta
uma meia volta à esquerda, e com um simples lanço de olhos pilhava com a boca
na botija a todos aqueles, que fiados na sua ausência tinham-se posto a
conversar ou a brincar. Então, dirigindo-se para a mesa em que escrevia ou para
a poltrona em que se sentava, tomava a Santa Luzia, que assim se chama a
palmatória, segundo
1CASADEI e CASADEI , 1989, p. 30
penso, por ser aquela santa a protetora
dos olhos e ter a palmatória nada menos de cinco; e começava-se o que se
poderia chamar um verdadeiro – vai de roda- ; visto que sem pronunciar o
nome, mas apenas indicando com os olhos ou com a mão a vítima que devia caminhar
para o sacrifício. (...) E que bolos; santo Deus! Estalavam que ainda mesmo de
muito longe se ouviam; e eram às vezes tantos que quase se lhes perdia a conta
( REZENDE , 1987, p. 174-175)
2o qual havia vivido por muitos anos em Campanha e
tinha também diversos parentes por lá
3O ensino
simultâneo, centrado na ação do professor e na atenção simultânea dos alunos,
se opunha aos métodos em voga no século XIX que reuniam numa mesma sala alunos de
várias idades e de vários níveis de ensino: o método individual e o método
mútuo. Além disso, essa nova organização escolar, que também pressupunha a
uniformização e seriação dos conteúdos, distribuídos gradualmente nos quatro
anos do curso primário, passou a exigir uma variedade muito maior de livros
didáticos adaptados ao ensino graduado .
O protagonista era um dos alunos mais novos da sala (9
anos) e afirma que o professor era menos severo com ele, permitindo que,
juntamente com o seu colega, o futuro senador Evaristo da Veiga, brincassem no
pátio e na horta de sua casa e ainda recebessem lanches de sua esposa. Afirma
que recebeu somente dois “bolos” devido a um erro gramatical durante uma lição.
Como a freqüência na escola era muito grande, o mestre dividia a turma em
classes. Segundo o autor, as classes inferiores eram, às vezes, desprezadas e
pouco se adiantavam. Lembra-se ainda que existiram vários “professores”
interinos ou talvez “simples ajudantes do professor efetivo”.
Há o registro de uma novidade da aula, mas que
considera de curta duração: “Essa novidade foi umas espécies de pequenas mesas
cercadas de umas taboletas as quais, cheias de uma areia bem lisa, serviam para
nela se escrever ou se fazerem letras, em lugar de lousas ou papel.” (REZENDE,
1987, p. 174)
Ferreira de Rezende informa que os alunos eram
obrigados a levar os livros, entretanto, os meninos pobres recebiam o material
da província. Segundo o Relatório de Presidente da Província de Minas Gerais do
ano de 1840, período próximo ao estudo de Ferreira de Rezende na “escola
pública” de Campanha, a Assembléia subvencionava parte do material didático das
escolas.
Concluirei esta parte, informando-vos , que tenho
posto particular cuidado em fazer distribuir, como é possível, pelas Escolas
algum papel, pennas, e outros objectos indispensaveis para o ensino, despeza
esta, que deve ir em augmento.(...) Taes objectos devem ser dados não só como
auxilio aos pobres, mas tambem como premios aos que de distinguirem por sua
conducta, e applicação. ( Fala do presidente Bernardo Jacintho da Veiga,
01/02/1840, p. 48)
Para
o Presidente da Provincia de Minas, Bernardo Jacyntho da Veiga2, o ensino mútuo
já estava “quase abandonado” nas escolas mineiras e voltava-se já para o
sistema “individual”. Além disso, observava que este método já era pouco
utilizado na França e, portanto, deveria ser substituído pelo Ensino Simultâneo3. A Assembléia
Mineira deveria
então subvencionar a viagem de dois professores à
França para aprender este método. Quanto à instrução secundária em Campanha,
neste mesmo relatório ocorrem notícias das cadeiras oferecidas e a preocupação
com os atrasos e baixos salários dos professores, informação constante tanto
nos Relatórios de Presidentes de Província, quanto nos diversos artigos de
jornais ao longo do século XIX
Quanto às da Villa da Campanha, informa igualmente o
respectivo Delegado, que nas de Latim, e Francez tem-se sempre notado grande
adiantamento dos estudantes, e que os de Filosofia tambem apresentarão algum
nos exames de 3 de Novembro. Represente muito energicamente o mesmo Delegado a
necessidade de elevarem-se os actuaes ordenados dos Professores, opinião esta,
que tem sido manifestada por outros Delegados, persuadidos que sem essa
providencia as Aulas não podem obter os precisos melhoramentos. (Fala do
presidente Bernardo Jacintho da Veiga, 01/02/1840. p. 50)
Quanto à sua experiência no ensino secundário,
Ferreira de Resende (1987) dá a saber que iniciou o estudo de latim em 1843.
Esta era a única cadeira oferecida em Campanha em sua época, já que as cadeiras
de filosofia e francês já haviam sido extintas neste momento. Segundo ele, não
podia saber “se a aula tinha-se fechado porque o professor se havia mudado; ou
se o professor mudou-se porque a aula havia sido extinta.” (REZENDE, 1987, p.
226)
O fato é que o único professor “público” de ensino
secundário em Campanha, para a única cadeira disponível em 1843, era o padre
mestre João Damasceno. O autor tinha a seguinte opinião sobre o seu professor:
Homem muito reservado, de modos um pouco misteriosos,
e muito econômico, o padre Manuel João Damasceno passava por ser um latinista
de primeira força, como sói acontecer a quase todos os mestres na opinião dos
seus discípulos. (...) Em todo caso, me parece que além dos estudos que eram
então necessários para a ordenação e de algumas tinturazinhas muito ligeiras de
botânica, o Padre Mestre João Damasceno muito pouco mais sabia do que algumas
noções de história e essas mesmas muito incompletas e muito superficiais.
Todavia, por causa daquela sua reserva e daqueles seus modos mais ou menos
misteriosos, ele passava para muita gente como um verdadeiro oráculo. (REZENDE
, 1987, p. 223)
O
perfil que Ferreira de Rezende apresenta de seu mestre foi composto a partir
dos cinco anos em que freqüentou a cadeira de latim. A aula diária durava três
horas, das 10 horas da manhã à uma da tarde. Como professor, o padre
contrastava com o professor de Primeiras Letras, já que o primeiro era “brando
em tudo” e não utilizava da palmatória; já o segundo era “colérico, impetuoso e
maligno”. O padre costumava até contar algumas anedotas, “cujo fim principal
era a nossa instrução moral ou então de dar-nos alguns conhecimentos sobre
muitas outras coisas que não era propriamente o latim.” (REZENDE,
1987, p. 224)
O
ensino do latim foi fundamental para Ferreira de Rezende na sua carreira
jurídica, mas o pouco conhecimento da gramática portuguesa, circunscrito
somente às aulas de primeiras letras, causou-lhe um estranhamento na sua
escrita ao longo de sua vida, e, quanto a esta característica de sua formação:
....inhabilidade para tudo quanto é língua; pois que
nunca outra tendo eu falado que não fosse a portuguesa, e a estando sempre a
falar há mais de meio século e de ordinário com gente que mais ou menos a
conhece, eu, entretanto, ainda até hoje não a posso escrever mais ou menos
corretamente, sem que tenha ao pé de mim um dicionário e algumas vezes mesmo
alguma gramática. (REZENDE , 1987, p. 227)
O
ensino de Ferreira de Rezende foi complementado pela leitura de diversos livros
da biblioteca particular de seu avô, por algumas aulas particulares de algebra
e francês e pelos ricos ensinamentos populares da “preta Margarida”.
Se um tal ensino teve para mim inconvenientes maus, a
intenção foi boa ou não foi má; e, em todo caso, graças à minha boa Margarida,
sei hoje tantas coisas, que a maior parte dos doutores de borla e capelo não
sabem talvez nem a metade. (REZENDE , 1987, p. 111)
Deve-se
considerar que o relato de Francisco de Paula Ferreira de Resende é essencial
para analisar um pouco acerca da história da cidade de Campanha,
particularmente suas experiências educacionais no ensino primário e secundário,
levando-se em consideração também que o aprendizado não é feito somente através
da educação formal, mas de toda a cultura que cerca o indivíduo. A
autobiografia de Ferreira de Resende é um ponto de partida para esta
compreensão.
Imagens:
01
- Foto da litogravura de Campanha,
feita em 1840. Acervo: Centro de Memória Cultural do Sul de Minas – Universidade
do Estado de Minas Gerais – Campus agregado de Campanha; a litogravura original
encontra-se no Arquivo Nacional
02
– Foto da casa onde nasceu e viveu
Ferreira de Resende. Foto Araújo, Campanha/ MG. O prédio foi destruído por um
incêndio na década de 1990.
03
– Francisco de Paula Ferreira de
Rezende em 1874, aos 42 anos de idade, In: Rezende, 1987
razil/mina.htm . Acesso em 23 de agosto de 2006
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