quarta-feira, 2 de abril de 2014

ARNALDO COMIN ENTREVISTA MARIO SERGIO CORTELA.

"A novidade hoje não é a corrupção, mas a apuração. Não é a sujeira. É o início da limpeza. Nas últimas duas décadas, nós tivemos fatos sequenciais de que a expressão máxima da impunidade, “acabar em pizza”, não aconteceu. Ao contrário, teve presidente do Congresso renunciando, prefeitos afastados, cidadãos no campo do empresariado encontrados em delito e punidos. Mas o conjunto ainda é pequeno para a quantidade de ocorrências. Ainda assim, não vejo que estamos nos degradando, muito pelo contrário."



Confira a entrevista com Mario Sergio Cortella. “Eu tenho aquilo que se chama esperança ativa. Aquela que se vai buscar e que não fica esperando”. É assim, sem esconder uma grande dose de otimismo, que se define Cortella, um personagem incomum dentro do meio acadêmico brasileiro. Prestes a completar 60 anos, Cortella já fez um pouco de tudo desde sua infância em Londrina, no Paraná.
Passou pela vida monástica em um convento, até que decidiu se dedicar ao mundo dos livros, abraçando a filosofia e a teologia. É professor titular de teologia e ciências da religião da PUC-SP desde 1977 e militante da causa da educação. Na política, foi secretário de Educação da Prefeitura de São Paulo na gestão de Luiza Erundina (1989-1993), por quem nutre enorme admiração devido à sua postura ética na política.
Autor de diversos livros, consultor e palestrante requisitado, Cortella tem na ética um de seus temas preferidos. Tanto que sua próxima obra, em parceria com o advogado e jornalista Clóvis de Barros Filho, a ser lançada em março, tem como título Ética e vergonha na cara. “O livro não fala só sobre ética na política, mas também em como devemos tratá-la no cotidiano, em benefício das pessoas”, destaca o autor.
Foi um pouco sobre moral, “vergonha na cara” e Black Blocks que girou esta entrevista concedida à Revista da ESPM. Comunicador nato, com voz de locutor, Cortella reconhece que nossos valores como nação passam por um momento crucial, mas enxerga uma luz no fim do túnel. Para o filósofo, a mudança vai ganhar fôlego quando três valores que já tivemos no passado — solidariedade, paciência e generosidade — resgatarem nosso espírito de comunidade. “Em 30 anos de democracia, o Brasil avançou mais do que em toda a sua história e o brasileiro está cada vez mais ciente de seus direitos. A novidade não é mais a corrupção, mas a apuração. Não é mais a sujeira. É o início da limpeza”.
Arnaldo — Os protestos de junho surgiram como uma esperança de que o brasileiro iria, enfim, erguer-se contra a ineficiência do Estado. Seis meses depois, o que restou foi um rastro de vandalismo autoritário, disfarçado por um discurso anarquista. A “primavera brasileira” caiu no esquecimento?
Cortella — No esquecimento não cairá. Mas com certeza houve um arrefecimento. Nos primeiros protestos havia um movimento com pauta, estrutura e partido político por trás. Era justamente a questão da tarifa de transportes. Então tudo começou com um tema candente para a vida coletiva. A reação policial, que foi desmedida e pouco inteligente, transformou o que era o movimento de uns em uma causa de muitos. Isso levou muita gente para as ruas e, nesse segundo momento, o aparato policial reagiu de maneira inversa. Não como cúmplice, mas calado e sem reação. A partir daí, tivemos um segundo fenômeno muito interessante do ponto de vista da filosofia.
Arnaldo — Que fenômeno foi esse?
Cortella — Fomos autorizados a ir para as ruas. Isso era uma coisa que não acontecia há muito tempo nas grandes cidades e, de repente, as pessoas foram levadas às ruas, com ou sem algo concreto para reivindicar. Isso virou programa com proteção policial. Poder andar no meio da avenida Paulista, protestar sobre qualquer coisa, sem risco e com amparo da polícia. Mas aí veio o terceiro movimento, e esse foi negativo. Quando aquilo que era uma eclosão democrática atraiu a presença de “democracidas”. E quando o “democracídio” entrou em cena, com os Black Blocks e outros, aquilo que era democracia voltou a ser risco. Entramos na violência, na brutalidade, que esvaziou esse movimento, porque a rua ficou perigosa de novo. Aí a manifestação perdeu fôlego.
Arnaldo — O que o senhor achou da reação da classe política em geral? Voltou tudo ao que era antes?
Cortella — Os protestos de junho do ano passado representaram uma crítica às pessoas que aí estão. Agora precisamos iniciar um movimento contra as pessoas que votaram naqueles que provocaram os primeiros atos. Vamos às fontes: não vivemos em uma ditadura e todos que estão no poder foram eleitos. O cidadão precisa fazer da política algo cotidiano, e não episódico. Nas cidades, isso é mais fácil em função da proximidade da Câmara dos Vereadores. Em nível estadual e federal, é mais complicado, mas não inviável. Precisamos fazer um acompanhamento mais efetivo do Legislativo e do Executivo. Afinal, as pessoas acompanham as novelas, os seus ídolos, e também devem exercer esse papel em relação às pessoas públicas. A classe política, embora esse termo não seja adequado, ficou em estado de tensão. Enfim, ninguém poderia imaginar que rota tudo aquilo ia tomar.
Arnaldo — Mas teve pouco efeito nas práticas políticas, não é fato?
Cortella — Nisso, os Black Blocks deram uma contribuição imensa à inércia, com um argumento absolutamente frágil ao se colocar como anarquistas. O anarquismo é um pouco mais sério do que a lógica da depredação. Quem leu Errico Malatesta, Pierre-Joseph Proudhon e Mikhail Bakunin sabe que anarquismo não é ausência de ordem, mas de opressão. Se existe uma coisa muito organizada, é o anarquismo. E temos prova disso a partir dos movimentos que surgiram no Brasil. No meu Estado de origem, o Paraná, tivemos a experiência de vida comunitária da Colônia Sicília (1890-1893). Em São Paulo, há cem anos o movimento anarquista chegou a construir escolas na Zona Leste. Voltando aos protestos, num primeiro instante, a categoria política se encontrou em estado de tensão, mas depois relaxou. Afinal, ela tem muito mais medo da mídia do que de qualquer movimento popular.
Arnaldo — Boa parte da esquerda brasileira assumiu o discurso da realpolitik, tolerante à corrupção e aos interesses de grandes setores econômicos, os mesmos que combatia no regime militar. Já na ala da direita é raro ver uma liderança que defenda com todas as letras temas clássicos como a reforma tributária e as bases do pensamento liberal. A ideologia acabou no Brasil?
Cortella — A ideologia não acaba, se você a imaginar como um conjunto de ideias que justifica a ação política. Ela pode ser consciente, declarada, ou mais automática, robótica. A ideologia como se colocava antes, com o socialismo, o comunismo, o anarquismo, o liberalismo, todo esse conjunto foi diluído numa solução “química”, que gerou essa nova mistura. Embora ela não seja simplesmente a realpolitik, tornou-se algo mais integrado à vida das comunidades. Portanto, uma aproximação maior da ideologia com a vida das pessoas. Aquilo que já foi chamado de direita e esquerda, com seus exageros — o comunismo dentro do socialismo e o conservadorismo dentro do liberalismo — sempre teve certo distanciamento da população, algo mais teórico. Hoje, no Brasil, a percepção é a de que um conjunto de pessoas adere a ações mais libertadoras, com um capitalismo de partilha, e outro encarna aquele liberalismo do século 19, da meritocracia exclusiva, da ausência de direitos sociais, do individualismo exacerbado. E que esses dois mundos acabam se conectando. Quando Paulo Maluf ainda não era petista, você tinha um recorte da situação. Hoje, temos na prisão pessoas com um histórico na luta democrática e outras, fora da prisão, que simbolizaram a fratura ética. Isso não significa que uma coisa autoriza a outra. É só uma constatação.
Arnaldo — Acaba sendo difícil identificar ideologias nesse contexto.
Cortella — Mas não vejo isso como uma implosão da ideologia. Ela vem à tona de outro modo, como no campo da sustentabilidade. Veja a Rede: antes que ela entrasse firme na possibilidade de fazer parte do aparelho de Estado, estava congregando pessoas em torno de novas ideias em economia, na ação do Estado. Até que entrou na realidade política do cotidiano. Isso não é conformidade, é inteligência para não desaparecer.
Arnaldo — Por que no Brasil é tão difícil falar em ética e moral, sem que isso soe como hipocrisia ou falso moralismo? Como estão nossos valores fundamentais de nação?
Cortella — Aí, sim, temos uma grande novidade, que é a recusa ao apodrecimento ético que a população se dá, e dá aos outros. A ideia de que vale qualquer coisa porque somos assim. Estamos adotando valores mais republicanos. A novidade hoje não é a corrupção, mas a apuração. Não é a sujeira. É o início da limpeza. Nas últimas duas décadas, nós tivemos fatos sequenciais de que a expressão máxima da impunidade, “acabar em pizza”, não aconteceu. Ao contrário, teve presidente do Congresso renunciando, prefeitos afastados, cidadãos no campo do empresariado encontrados em delito e punidos. Mas o conjunto ainda é pequeno para a quantidade de ocorrências. Ainda assim, não vejo que estamos nos degradando, muito pelo contrário.
Arnaldo — Estamos, então, construindo valores positivos para a sociedade brasileira?
Cortella — Tivemos três fatores importantes para isso: imprensa livre, plataformas digitais e o maior nível de informação e de escolarização. Porque o número de patifes de uma nação é menor que o de não patifes em larga escala. O número de pessoas que degradam a convivência não chega a 10% daqueles que fazem exatamente o contrário. São as pessoas que trabalham, que contribuem com a sociedade, que são gentis com o outro. A imprensa livre gera uma capacidade de divulgação e de persistência, que aumenta o volume de denúncias. As plataformas digitais aumentaram a fiscalização e detecção dos ilícitos. A formação escolar da população, que aumentou nas últimas décadas, contribui contra a alienação.
Arnaldo — Mas ainda temos uma Justiça que não condena, uma polícia que é violenta, mas que não prende os grandes criminosos, um magistério que dá aulas, mas não ensina, e um sistema de saúde que, quando atende, cura pouco. Por que é tão difícil consertar esses problemas?
Cortella — Nós somos um país que tem 513 anos, mas que não tem 30 anos de democracia, de mecanismos que conduzam uma partilha mais eficaz daquilo que é coletivamente produzido. Nos primeiros 389 anos, ou éramos uma colônia ou um império. Nos primeiros cem anos da República, a participação popular era muito restrita. A primeira eleição geral no Brasil é de 1989. Então, nosso aparelho de Estado ainda é muito imperial ou colonial.
Arnaldo — De que forma isso acontece?
Cortella — O Estado opera mais no campo do favor que do direito. Aqui, nos definimos como contribuintes, o que é estranho, já que imposto é algo obrigatório. O norte-americano se define como tax payer, há uma diferença de postura. Essa percepção do aparelho de Estado a nosso serviço é muito recente. Além disso, há 50 anos não éramos uma das dez nações economicamente mais poderosas do planeta. Se não éramos, é porque não tínhamos também as condições mínimas de educação, saúde etc. Muitos de nossos índices não são satisfatórios, mas a verdade é que, até pouco tempo, não tínhamos essa visão de partilha. No momento em que se começa a colocar direitos como o Sistema Único de Saúde (SUS), quando se impõe a ideia da educação para todos e a Constituição de 1988 cria novos patamares de direitos, entramos no campo da judicialização.
Arnaldo — O Estado, então, começa a ter mais consciência de seus deveres?
Cortella — Quando se fala no direito à creche, isso vai para os jornais, a Vara da Infância pressiona o poder público, e esse movimento leva a uma constatação desses direitos. Nós somos uma população — sem brincar de Poliana — muito capaz. Conseguimos criar a sexta maior economia do planeta ocupando apenas a posição de número 66 em educação. Para quem acha que há um vínculo direto entre educação e desenvolvimento, quando formos a décima em educação seremos a maior economia do planeta? Obviamente, não funciona assim. Mas estamos seguindo em um caminho positivo.
Arnaldo — Um fenômeno importante que vem ocorrendo no Brasil é o paradoxo da violência e da distribuição de renda. Embora a qualidade de vida tenha melhorado para a maioria da população, os índices de criminalidade explodiram. Isso põe por terra a teoria clássica de que a violência é fruto da pobreza?
Cortella — A pobreza em si não é um fator de violência, assim como a riqueza não representa o seu bloqueio. A nação mais poderosa do planeta tem o sistema penitenciário mais extenso. Os níveis de violência dentro dos Estados Unidos não são como os nossos de maneira isolada, mas no conjunto mostram um nível de agressividade muito elevado. A partilha de bens que oferecem bem-estar social, essa sim é um elemento que colabora para a diminuição da violência. O que favorece em grande medida a questão dessa violência é a circulação em larga escala dos negócios ilegais e de uma polícia que é patrimonialista.
Arnaldo — O Estado ainda não se vê como defensor do cidadão?
Cortella — A polícia passa boa parte do tempo por conta da legislação e pelo próprio modus operandi, cuidando do patrimônio em vez das pessoas. Exemplo banal: se você liga para um serviço policial e diz que o menino da casa vizinha está apanhando do pai, vai demorar a aparecer alguém. Se você liga dizendo que há um assalto a banco — que tem seguro —, em um minuto aparecem dez viaturas. Há um uso muito forte da estrutura de repressão em defesa do patrimônio privado. Isso faz parte da nossa formação.
Arnaldo — A violência se deve essencialmente à ineficiência do Estado?
Cortella — É verdade que onde se oferecem melhores condições de sobrevivência você reduz os motivos que levam à violência. Mas é difícil imaginar que um menino de periferia das grandes cidades irá se convencer a estudar, trabalhar e ter acesso a todos os bens que deseja com um ou dois salários mínimos no fim do mês. No campo da droga, ele recebe isso em menos de uma semana, apenas fazendo entrega. E com isso ele pode ter tudo aquilo que o seduz no campo da “consumolatria”. Então, o problema é que há forças agindo na mesma direção. Tivemos um aumento significativo das cidades nas últimas décadas, um aumento do anonimato das pessoas e do desconhecimento do aparato policial em relação aos cidadãos. Isso gera um adensamento que favorece esse tipo de eclosão. E a droga é decisiva nisso, porque ela por si só gera uma grande cadeia que favorece a violência.
Arnaldo — O senhor costuma citar a frase do Tom Jobim de que o “sucesso no Brasil é uma ofensa”. De onde vem esta percepção?
Cortella — Isso é uma herança do patrimonialismo ibérico. Vale lembrar que somos uma sociedade fundada com três forças divergentes. O europeu, que veio para tirar e sair rápido; o indígena, que queria que todo mundo fosse embora; e o africano, que foi trazido à força e queria voltar para casa. Não nascemos com o espírito de formação de uma nação, e é diverso da formação de uma nação mais jovem que a nossa, a norte-americana, cujo grupo de pioneiros veio para fundar outro lugar e viver nele. A tal ponto de usar a palavra “novo” — “Nova Inglaterra, Nova York, Nova Jersey” — como maneira de fixação. É claro que houve o conflito com indígenas, a escravização, mas numa escala diversa da nossa.
Arnaldo — Temos um problema de origem, é isso?
Cortella — Num primeiro momento, a nossa sociedade foi submetida a um Estado ibérico, depois a grandes capitanias hereditárias e, por fim, a sesmarias. Cada uma com um proprietário nomeado por ordem imperial ou por direito de herança. E o número de proprietários sempre foi pequeno. Então, ou a população se submetia a esse proprietário numa relação servil, ou não sobreviveria. Muito mais do que gerar um povo pacífico, esse arranjo de sobrevivência gerou um povo desarmado. O que chamamos de pacifismo na nossa história é muito mais uma impossibilidade de reação. Não é casual que as regiões mais politizadas do Brasil estão no Sul, onde a estrutura comunitária, do pequeno proprietário, que se associa a outros em cooperativas, é marcante. Ali há uma marca maior de escolarização, um enfrentamento maior do poder central. No entanto, onde não tivemos essa condição é que de fato o modelo colonial se impôs.
Arnaldo — Então, quem se destaca nesse ambiente acaba sendo malvisto?
Cortella — Ele vai ser percebido como o amigo do rei. Na área militar, é o famoso “peixinho”, o amigo do comandante. A história da atriz que precisa transar com o diretor para conseguir o papel. A ideia do mérito pessoal, em vez do favor do mandante, vai ser muito rara no nosso cotidiano. Daí a frase do Tom Jobim de que o sucesso é uma ofensa. Isso foi uma cultura disseminada pela própria elite, para descaracterizar o mérito das pessoas de fora do seu círculo.
Arnaldo — Embora haja essa desconfiança sobre a meritocracia na nossa cultura, o empreendedorismo vem se tornando um valor muito admirado no Brasil. Fazendo um paralelo à vida pública, na redemocratização, figuras de destaque, seja do pensamento mais à esquerda ou à direita, tiveram papel importante na política. Passados 30 anos, fica a sensação de que as pessoas de maior talento e empreendedoras não querem mais fazer parte da política. O mesmo vale para boa parte do funcionalismo público, que já foi prestigiado socialmente. O governo não atrai mais as pessoas brilhantes?
Cortella —  Até 30 anos atrás tínhamos uma causa coletiva, que era o enfrentamento da ditadura. O propósito era forte e a política surgia como serviço, não como benefício. Não acredito que tenhamos perdido isso, mas se deslocou para a área do Ministério Público, onde a entrada de pessoas com um ideal mais forte levou a uma série de turbulências positivas. Nós tivemos homens e mulheres de ideologias e ainda os temos — como a Luiza Erundina, com quem eu convivi muito tempo, ou ainda a Marina Silva, que são mulheres de causas. Mas a política partidária perdeu o encanto para as novas gerações, e restaram apenas algumas pessoas com suas histórias pessoais, com uma atitude até de heroísmo. Aliás, o heroísmo mudou de foco.
Arnaldo — Não temos mais heróis?
Cortella — As celebridades, que nos anos de 1970 eram os músicos, os artistas que faziam oposição ao regime ditatorial, migraram para o esporte, a TV. Existe outro tipo de admiração. Por isso, nossos heróis ficaram no século 20. O Obama, que surgiu como um movimento de redenção histórica, não manteve o mesmo fôlego na sua reeleição. É interessante notar que nos países do mundo islâmico, sob forte repressão, estão surgindo as novas heroínas. No Brasil, essa nova geração que chega não vê a participação na política partidária como honrosa. Por outro lado, há sim a defesa de causas em outro campo. O número de organizações não governamentais que canalizam o desejo de mudança tornou o meio político mais restrito para essa militância. Então, não houve o fim do sonho, mas o poder público não é mais o canal exclusivo.
Arnaldo — A clássica Lei de Gérson resiste a esses novos tempos?
Cortella — Ela perdeu o encantamento original. No início, numa sociedade que era emergente, deixando o capitalismo do século 19 rumo à visão de consumo do século 20, a sensação de vantagem era sedutora. Era uma sociedade que começava a pregar esse individualismo exacerbado. A Lei de Gérson de “levar vantagem em tudo” tinha o seu encanto. Mas isso foi se perdendo porque o individualista clássico está deixando de ser admirado. Levar vantagem não deve ser em tudo, nem de qualquer modo.
Arnaldo — Voltando aos valores, o que é necessário para que figuras de alta relevância social, como professores, médicos e policiais, readquiram a admiração que já tiveram no passado?
Cortella — É impossível recuperar essa imagem, porque essas profissões eram as que estavam mais perto das pessoas. Era o policial que te conhecia e cumprimentava na rua. Era o professor, o médico de família. Essa hiperdimensão populacional, o aumento das cidades, levou a uma perda desse tipo de relacionamento. A descentralização dos serviços levou ao anonimato e acabou com esse tipo de relacionamento duradouro.
Arnaldo — Perdemos esse espírito de comunidade?
Cortella — A ideia de sucesso migrou do trabalho para o benefício das pessoas em direção à realização financeira. Há 30 anos, um professor era reconhecido pelo seu conhecimento. Hoje não consegue comprar um carro, que é um símbolo de realização. Isso significa que ele não é mais admirado da mesma maneira. O mesmo se dá em relação a outros profissionais. Antigamente, no interior, as pessoas mostravam a casa da diretora da escola para as visitas. Essa situação foi agravada pela baixa remuneração dessas profissões. O que podemos ter é a reinvenção dos nossos polos de admiração. Existe uma valorização das pessoas que se apoiam em causas sociais, como as ONGs. Mas isso vai depender bastante do papel dos meios de comunicação nessa divulgação de ações positivas.
Arnaldo — Que valores o Brasil precisa resgatar e adaptar aos novos tempos?
Cortella — Temos de resgatar três grandes valores relacionados com a vida comunitária. O primeiro é a solidariedade, que nos afasta do individualismo exacerbado. Há também a paciência. Estamos numa sociedade muito apressada, em que se deseja tudo agora. Paciência não quer dizer lerdeza, e sim o tempo de maturação da convivência. O terceiro deles é a generosidade. Porque a solidariedade não é necessariamente generosa. A pessoa generosa é aquela que partilha. Isso foi representado por muito tempo com aquele costume de preparar um bolo de fubá à tarde e levar para o vizinho. Esses valores foram se perdendo em função de um individualismo mais marcante.
Arnaldo — O senhor é otimista com esse resgate de valores?
Cortella — Bastante. Eu tenho aquilo que se chama de esperança ativa, que é buscar em vez de aguardar. E esse otimismo não vem da ingenuidade. Pelo contrário, ele vem da consciência de que estamos em meio a um processo de agravamento de alguns horrores. Esses momentos ajudam a mudar a percepção coletiva. Há um esgotamento do modelo atual e, seja por convicção ou coerção, essa mudança está acontecendo.
Arnaldo — De que forma isso ocorre?
Cortella — Vou te dar dois exemplos banais. Vai fazer 20 anos que existe no Brasil a lei do cinto de segurança. No começo, as pessoas chegaram a comprar camisas do Vasco ou da Ponte Preta para não usar o cinto. Todo mundo dizia que essa lei não ia pegar. Naquele tempo tinha multa, como é hoje, só que ninguém usa mais o cinto pensando na multa. Ele se incorporou ao cotidiano. Há 20 anos, num auditório haveria a placa “Pede-se para não fumar”. Há dez anos, a placa diria “É proibido fumar”. Agora não tem placa. Então, somos capazes de produzir malefícios e benefícios. Karl Marx cunhou no século 19 a frase que hoje me acalma: “A humanidade nunca se coloca diante de problemas que ela já não tenha condições de resolver”.

 Por Arnaldo Comin
http://revistadaespm.espm.br/?p=2657

Nenhum comentário:

Postar um comentário

VENDO ECOSPORT 2.0 CÔR PRETA

 VENDE-SE Veículo ECOSPORT 2.0 ANO 2007 FORD   -  CÔR PRETA KM: 160.000 R$35.000,00 Contato: 9.8848.1380

Popular Posts