quarta-feira, 10 de setembro de 2014

A LEITURA ORAL NO BRASIL.

Walter Benjamin e a literatura oral no Brasil

Bernardo Buarque de Hollanda

São arquiconhecidos os ensaios do filósofo alemão Walter Benjamin referentes à questão da narrativa na literatura, em particular o texto: “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. Sua visão até certo ponto pessimista da incidência da cultura de massas na cultura popular fez com que, no final dos anos 1930, o autor considerasse “a arte de contar histórias” uma prática em vias de extinção.

Na Europa pré-industrial e pré-moderna, os contadores de história haviam fixado uma tradição narrativa com base no campo de experiências de dois tipos humanos: o camponês e o aventureiro. Enquanto o primeiro caracterizava-se pelo conhecimento daqueles que contavam histórias baseadas em uma sabedoria local, vinculada ao modus vivendi da terra natal, o segundo era representado por aquele cuja aprendizagem e cujos ensinamentos derivavam de suas viagens a lugares remotos e distantes.

A narração daquilo que foi visto ou daquilo que foi vivido eram dois procedimentos habituais na ‘era artesanal’ a que se referia Benjamin. Por meio deles, os elos entre as sucessivas gerações de uma mesma localidade eram estabelecidos. A comunicação tradicional de uma história dava-se, pois, diretamente, a partir de uma troca de saberes numa totalidade integrada. Os gestos, a palavra falada e toda a comunidade de ouvintes encontravam-se unidos por vínculos telúricos.

Segundo Benjamin, a eclosão da modernidade, a ascensão da imprensa e a difusão da escrita vieram cindir essa estrutura sedimentada ao longo de vários séculos, instaurando em seu lugar um tipo de comunicação não mais baseado na tradição ou no conhecimento extraído da vivência direta. A informação típica do mundo moderno era aquela do jornal e do romance burguês.

A primeira baseava-se na série de notícias instantâneas, massificadas e destituídas de qualquer sentido comunitário, uma vez que as novidades incessantes produzidas pelo capitalismo eram destinadas a chamar a atenção do leitor, lançando mão para isto de relatos de choque. A sucessão de manchetes cada vez mais sensacionais informava sobre acontecimentos uniformes e impessoais, sem vinculação com o saber local ou com a experiência interpessoal.

Já o segundo, os romances dos escritores do século XIX e XX, evidenciava também a cisão na cadeia de transmissão entre emissor e receptor. Apartando-se do mundo circundante, o escritor era aquele indivíduo que operava uma introspecção de fundo psicológico e que tentava, em um afã individual, a recuperação de suas experiências através de uma ‘busca do tempo perdido’. Este distanciamento perante seu leitor, na comunicação que outrora se estabelecia d e maneira integrada, resultava nos solilóquios romanescos, em obras de profunda introversão e isolamento.

Ao contrário dos prognósticos e do ponto de vista niilista apresentado por esse notável ensaísta alemão, a cultura popular foi capaz de superar as previsões de nivelamento e de homogeneização na vida moderna e contemporânea. Em que pese seu poder avassalador, os veículos industriais de comunicação na ‘era de sua reprodutibilidade técnica’ não foram capazes de solapar a diversidade das práticas e das produções culturais no decurso do tempo. Estas souberam se adaptar às transformações verificadas no século XX e ao seu impacto no universo das relações sociais.

A Literatura de Cordel, por exemplo, enraizada no nordeste brasileiro em fins do século XIX, soube articular com propriedade tanto os elementos da cultura de massas quanto as características da cultura popular. Inicialmente voltado para a narração de grandes temas legados pela tradição oral da Península Ibérica, o romanceiro popular soube reproduzir suas histórias através da memória coletiva e da transmissão oral.

Os casos e as anedotas de fundo mítico, sagrado ou histórico - o rei Carlos Magno, os doze Pares de França, a imperadora Teodora, o Lunário Perpétuo - incorporaram-se ao imaginário social nordestino, com seu folclore e com suas crendices próprias. À medida que se aclimatou nesta região, o cordel passou a divulgar seus folhetos através das rústicas casas tipográficas. Um sem-número de acontecimentos e de personagens característicos da história do Nordeste - Lampião, padre Cícero, Antônio Silvino, a seca e a guerra de Canudos - foi adaptado e endossou o estoque de contos populares, ganhando suas próprias versões nas narrações do cordel.

Ao lado da criação literária, sua utilidade passou também nesse momento por seu caráter de informação, com a repetição e a veiculação de notícias difundidas pelos jornais e pelas rádios nas áreas mais afastadas do sertão. A grande emigração nordestina para a região sudeste do país em meados do século XX propiciou a ampliação do repertório temático dos cordéis e a sua repercussão em âmbito nacional.

A descrição dos acontecimentos diários ganhou grande importância para sua aclimatação em outras cidades. A técnica da peleja verbal, com a arte de contar histórias por meio de sextilhas, setilhas ou décimas, fez os repentistas encontrarem nos fatos cotidianos a sua matéria-prima. Através das informações colhidas na imprensa, eles teciam comentários e emitiam opiniões acerca de tudo aquilo que viam e ouviam nas cidades em que chegavam.

Tal qual um repórter da vida urbana, qualquer notícia divulgada pelos meios de comunicação passou pelo crivo e passou a servir para o relato criativo dos cordelistas. Entre o ordinário e o extraordinário, entre o real e o ficcional, a Literatura de Cordel se mostrou assim nem refratária nem incongruente com o fenômeno da cultura de massas, mas ao contrário afinada e condizente com ela, sabendo extrair da mesma um manancial de histórias a serem contadas e recontadas.

Para quem quiser um aprofundamento no assunto, recomendo a obra do antropólogo Antônio Augusto Arantes, “O trabalho e a fala: estudo antropológico sobre os folhetos de cordel”, publicado em 1982. Quanto a Benjamin, são notórias conhecedoras de sua obra no Brasil Olgária Matos e Jeanne Marie Gagnebin. Já Sabrina Seldmayer e Jaime Ginzburg organizaram recentemente a coletânea “Walter Benjamin: rastro, aura e história”, pela excelente editora da UFMG. Também recomendo.
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Bernardo Buarque de Hollanda - artigo publicado no UOL Educação - 18/08/2014

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