segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

POR QUE ESTÁ ERRADO, SER DIFERENTE?

https://www.facebook.com/celvio.casal/posts/403946136447527


Amigos, quem me conhece e à minha família já sabe que, por uma decisão baseada em nossas formulações de liberdade, autonomia e do desenvolvimento do potencial de cada pessoa, a minha filha Júlia não frequenta a escola.
A decisão partiu dela, no final do ano letivo de 2013. Conversamos e, embora a mãe dela e eu concordássemos com todos os argumentos levantados por ela para deixar a escola, insistimos para que terminasse os estudos. Na época ela estava concluindo o sexto ano e nosso acordo era que ela terminaria o ensino fundamental e nós seguiríamos pesquisando alternativas para sua educação.
Durante o primeiro semestre de 2014 procuramos escolas com propostas de aprendizado livre em Porto Alegre e não encontramos nenhuma com as características que buscávamos. Paralelamente, intensifiquei meus estudos em pedagogia, especificamente a pedagogia libertária e desescolarização.
Nesses estudos aprendi sobre o ato de aprender, sobre a importância da descoberta da autonomia, um processo singular, que não pode ser ensinado. Aprendi sobre como as instituições formais, ao oferecerem um produto de ensino na forma do currículo, interrompem esse processo de descoberta e construção da autonomia de aprender. Aprendi também que o que importa no aprendizado não é o conteúdo, mas sim as relações que se estabelecem na vivência e que essas relações precisam ser horizontais e, portanto, não podem ser planejadas antes e sem a presença de todos e que, quando esse tipo de relação previamente estipulada sem a participação de todas as pessoas envolvidas se estabelece, o que ocorre é o abafamento da vida, a diminuição da potência, a quebra da autonomia. São relações violentas e o currículo é uma delas.
Li sobre a ética da educação, o processo cognitivo do aprendizado, as diferentes correntes estruturalistas, construtivistas, montessorianas, waldorf, escolas democráticas, educação ativa e muitas outras. Embasei meus estudos em Espinoza, Nietzsche, Foucault, Deleuze, Guatarri, Bergson, Maturana, Ximena, Illich, A. S. Neil, Carl Rogers, Arno Stern, Andre Stern, Paulo Freire, Rubem Alves, Gandhy Piorski, Hanna Arendt, John Taylor Gatto, Fernando Hernández, Paul Robin, Sebastien Faure, Francisco Ferrer, Kropotkin, Bakunin, Tolstoi, Malvina Tavares, Luiz Fuganti, Ana Thomaz, Sabrina C. BittencourtCarla FerroGuisch Sch,Marcio Patzinger VolkJuliana CorullonCristiane CubasFer PolettoDai SeramartJosé PachecoThais Vassoler ZacaroAna ZattAna Feliccia,Isa Guarani-Kaiowá Canfield e muitos outros grandes pensadores e fazedores do aprendizado.
Corri para estabelecer redes de apoio mútuo locais e conectá-las a outras redes por todo o Brasil e pelo mundo. Assim descobri a Escola com Asas, a Escola de Rua, o Sítio Timbaúva, entre outras redes e espaços de educação livre e, junto com amigxs e outras pessoas interessadas, iniciamos a Comunidade Aprendente e a Universidade Pósdescolarizada, com a ideia de que se tornassem redes não institucionais de aprendizado e coorientação em pesquisas. Redes de aprendizado informal, onde apenas o amor e a paixão por aprender, descobrir e saber movem as pessoas. Estamos apenas iniciando as atividades dessas redes. Já promovemos grupos de estudos, encontros para aprender costura, fazer bonecos de pano, assistir filmes, discutir educação, brincar na natureza e várias outras atividades.
No exterior estabelecemos contato com a Clonlara School Home Based Education Program que tem sedes nos EUA e Espanha. Júlia está matriculada em um programa de tutoria EAD na Clonlara Espanhola, em Barcelona. Também temos contato com comunidades de aprendizagem em Portugal, Espanha e Uruguai.
Nossas redes são compostas de mães, pais, crianças, adolescentes, educadorxs, professorxs, pesquisadorxs, artistas, artesãxs, profissionais de diversas áreas do conhecimento, dispostxs a compartilhar seus saberes e aprender na vivência, ressignificando o mundo inteiro como espaço de aprendizagem.
Em novembro de 2014, promovemos uma temporada do documentário francês Ser e Vir a Ser, que explora o cotidiano de crianças, jovens e adultos que não frequentam a escola e aprendem de forma desescolarizada. Realizamos seis sessões do filme com debates riquíssimos após cada exibição.
Também Participo do grupo de pessoas comprometidas com a abertura de uma Escola da Ponte em Porto Alegre, que será uma comunidade de aprendizagem, regulamentada, que emitirá certificados de conclusão do ensino fundamental e médio para os alunos matriculados e terá também abertura desescolarizada para aprendentes de todas as idades que queiram frequentar e participar de qualquer atividade
Na metade do ano, Júlia descumpriu o acordo e parou de frequentar a escola. A mãe dela e eu a interpelamos sobre o descumprimento, e ela disse que não aguentava mais. Júlia não sofria bullying na escola. Tirava boas notas em todas as disciplinas e colecionava absurdos ditos por suas professoras, como a professora de artes que os obrigava a fazerem orações antes da aula ou outra professora que dizia que enquanto eles (os alunos) não tivessem renda e não se sustentassem, "não tinham que dar opiniões".
Diante da legitimidade do que a Júlia nos trazia sobre sua relação com a escola, da descrença na possibilidade de espaços institucionais escaparem dessa lógica perversa, percebemos que o acordo que havíamos feito era abusivo, pois compreendia a Júlia estar disposta a suportar uma violência (assim ela sentia, logo, era uma violência) apenas por que a mãe dela e eu ainda não tínhamos confiança de como seria sua educação fora da escola.
Na metade do ano de 2014 então, Júlia deixou de frequentar a escola, permanecendo apenas vinculada à oficina de teatro, a única atividade que lhe interessava, que acabaria com uma mostra teatral em um mês. Após isso, cancelamos sua matrícula na escola.
Os percursos de aprendizado da Júlia desde então tem sido definidos por ela mesma e meu papel e da mãe dela tem sido o de observar, escutar, conversar e facilitar o acesso aos recursos necessários para que seus projetos se desenvolvam. O acesso às redes de aprendizado construídas ao longo desse tempo tem sido um recurso crucial nesse sentido.
Nessa caminhada, estamos conhecendo melhor a nossa filha. Júlia está gradualmente recuperando sua autonomia e se responsabilizando por seu próprio aprendizado. Seus projetos vão adquirindo cada vez mais complexidade e vão mesmo exigindo conhecimentos avançados, que ela sequer estaria aprendendo na escola.
Seus projetos não acontecem apenas em casa. Aliás, a proposta da desescolarização é que o aprendizado se dê na relação com a diversidade, em redes solidárias de apoio mútuo. Então, Júlia convive com a diversidade e aprende na diversidade, nos conflitos, nos estranhamentos, no diálogo.
Mas nem tudo é alegria na desescolarização...
A lei brasileira é ambígua no que tange à permanência na escola. Enquanto dispositivos como a Constituição e a Declaração Universal dos Direitos do Homem (que tem valor supra legal no Brasil) garantem o direito à educação e a primazia da família na escolha da forma como se dará educação dos filhos, leis como a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) e o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) estabelecem a obrigatoriedade de matrícula em instituição formal de ensino e o CP (Código Penal) indica penas como detenção e multa para mães e pais que não matricularem os filhos entre 4 e 17 anos em alguma escola regular. A interpretação que tem prevalecido nos casos de educação domiciliar e desescolarização no Brasil tem sido a da obrigatoriedade e não encontrei nenhum caso de julgamento favorável. Essa interpretação se dá com base na crença de que estar fora da escola formal caracteriza a alienação do direito à educação.
No estado do Rio Grande do Sul, um sistema conhecido como FICAI gera uma rede de informações que comunica ao poder público a infrequência escolar e este aciona a família, através do trabalho do CT (Conselho Tutelar), para verificar a situação de infrequência.
Fomos então intimados pelo CT para uma conversa. Essa conversa se deu em novembro de 2014 e foi uma experiência kafkiana. Três conselheiros, muito pouco interessados nas particularidades de nosso caso, tentaram nos convencer da legitimidade da obrigação de frequência à escola. Não obtendo resultado, nos encaminharam para a Promotoria da Infância e Juventude do Ministério Público.
Ontem fomos intimados pela promotoria a prestar esclarecimentos e apresentar comprovantes de frequência escolar em 2014 e matrícula em estabelecimento formal de ensino em 2015. Temos o prazo de 10 dias para fazer isso. Sei que o próximo passo é, no caso de desacordo, a promotoria representar judicialmente contra o que é classificado como "abandono intelectual" e, a partir de então, o processo começa a correr na esfera judicial.
Não permitiremos sermos coagidos por imposições legais sem fundamento. A universalização da interpretação legal pela obrigatoriedade da matrícula escolar silencia as diferenças de quem efetivamente se responsabiliza pela educação dxs filhos, promove uma tutela excessiva que compete com os direitos básicos das pessoas e com a liberdade individual e coletiva, e dificulta a organização e ação de formas autônomas de aprendizado livre.
Reconhecemos a importância dos dispositivos legais, no presente momento de nossa sociedade, para assegurar que crianças e adolescentes não sejam privados de experiências de aprendizado significativas e de convívio saudável em comunidade. Entretanto, julgamos que não reconhecer as particularidades de cada caso e as mudanças nos métodos de aprendizagem e aplicar uma solução legal padronizada é uma completa distorção da finalidade da justiça. É uma forma de enrijecer a dinâmica social em um ponto epistemológico já há muito superado.
Amigos queridos, gostaria de, dado o tamanho do desafio e da luta que teremos pela frente, pedir o apoio de vocês nessa jornada. Aqueles de vocês que solidarizarem com nossa história, peço ajuda na indicação de advogado que queira tratar do nosso caso na esfera judicial. Também para aqueles que puderem de alguma maneira relatar como enxergam nosso compromisso com a educação, adicionaremos tudo no dossiê que estamos preparando para justificar nossa escolha. Outra forma de ajudar é participando de nossas redes, propondo atividades, participando de nossos encontros e ajudando a construir um mundo onde aprender seja efetivamente direito e responsabilidade de todos, e não um serviço, commodity ou produto industrial padronizado e obrigatório.
Agradeço muito a todos vocês que têm participado desse percurso lindo e desafiador.

Saúde, amor e anarquia!
--

Simone G de Lima
Laboratório Ágora Psyché
Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento , IP
Universidade de Brasília

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