Amigos,
quem me conhece e à minha família já sabe que, por uma decisão baseada em nossas
formulações de liberdade, autonomia e do desenvolvimento do potencial de cada
pessoa, a minha filha Júlia não frequenta a escola.
A
decisão partiu dela, no final do ano letivo de 2013. Conversamos e, embora a mãe
dela e eu concordássemos com todos os argumentos levantados por ela para deixar
a escola, insistimos para que terminasse os estudos. Na época ela estava
concluindo o sexto ano e nosso acordo era que ela terminaria o ensino
fundamental e nós seguiríamos pesquisando alternativas para sua educação.
Durante
o primeiro semestre de 2014 procuramos escolas com propostas de aprendizado
livre em Porto Alegre e não encontramos nenhuma com as características que
buscávamos. Paralelamente, intensifiquei meus estudos em pedagogia,
especificamente a pedagogia libertária e desescolarização.
Nesses
estudos aprendi sobre o ato de aprender, sobre a importância da descoberta da
autonomia, um processo singular, que não pode ser ensinado. Aprendi sobre como
as instituições formais, ao oferecerem um produto de ensino na forma do
currículo, interrompem esse processo de descoberta e construção da autonomia de
aprender. Aprendi também que o que importa no aprendizado não é o conteúdo, mas
sim as relações que se estabelecem na vivência e que essas relações precisam ser
horizontais e, portanto, não podem ser planejadas antes e sem a presença de
todos e que, quando esse tipo de relação previamente estipulada sem a
participação de todas as pessoas envolvidas se estabelece, o que ocorre é o
abafamento da vida, a diminuição da potência, a quebra da autonomia. São
relações violentas e o currículo é uma delas.
Li
sobre a ética da educação, o processo cognitivo do aprendizado, as diferentes
correntes estruturalistas, construtivistas, montessorianas, waldorf, escolas
democráticas, educação ativa e muitas outras. Embasei meus estudos em Espinoza,
Nietzsche, Foucault, Deleuze, Guatarri, Bergson, Maturana, Ximena, Illich, A. S.
Neil, Carl Rogers, Arno Stern, Andre Stern, Paulo Freire, Rubem Alves, Gandhy
Piorski, Hanna Arendt, John Taylor Gatto, Fernando Hernández, Paul Robin,
Sebastien Faure, Francisco Ferrer, Kropotkin, Bakunin, Tolstoi, Malvina Tavares,
Luiz Fuganti, Ana Thomaz, Sabrina C.
Bittencourt, Carla Ferro, Guisch Sch,Marcio Patzinger
Volk, Juliana Corullon, Cristiane Cubas, Fer Poletto, Dai Seramart, José
Pacheco, Thais Vassoler Zacaro, Ana Zatt, Ana Feliccia,Isa Guarani-Kaiowá Canfield e
muitos outros grandes pensadores e fazedores do aprendizado.
Corri
para estabelecer redes de apoio mútuo locais e conectá-las a outras redes por
todo o Brasil e pelo mundo. Assim descobri a Escola com Asas, a Escola de Rua, o
Sítio Timbaúva, entre outras redes e espaços de educação livre e, junto com
amigxs e outras pessoas interessadas, iniciamos a Comunidade
Aprendente e a Universidade
Pósdescolarizada, com a ideia de que se tornassem redes não institucionais
de aprendizado e coorientação em pesquisas. Redes de aprendizado informal, onde
apenas o amor e a paixão por aprender, descobrir e saber movem as pessoas.
Estamos apenas iniciando as atividades dessas redes. Já promovemos grupos de
estudos, encontros para aprender costura, fazer bonecos de pano, assistir
filmes, discutir educação, brincar na natureza e várias outras atividades.
No
exterior estabelecemos contato com a Clonlara School Home Based
Education Program que tem sedes nos EUA e Espanha. Júlia está matriculada em
um programa de tutoria EAD na Clonlara Espanhola, em Barcelona. Também temos
contato com comunidades de aprendizagem em Portugal, Espanha e Uruguai.
Nossas
redes são compostas de mães, pais, crianças, adolescentes, educadorxs,
professorxs, pesquisadorxs, artistas, artesãxs, profissionais de diversas áreas
do conhecimento, dispostxs a compartilhar seus saberes e aprender na vivência,
ressignificando o mundo inteiro como espaço de aprendizagem.
Em
novembro de 2014, promovemos uma temporada do documentário francês Ser e Vir a
Ser, que explora o cotidiano de crianças, jovens e adultos que não frequentam a
escola e aprendem de forma desescolarizada. Realizamos seis sessões do filme com
debates riquíssimos após cada exibição.
Também
Participo do grupo de pessoas comprometidas com a abertura de uma Escola da Ponte em Porto
Alegre, que será uma comunidade de aprendizagem, regulamentada, que emitirá
certificados de conclusão do ensino fundamental e médio para os alunos
matriculados e terá também abertura desescolarizada para aprendentes de todas as
idades que queiram frequentar e participar de qualquer atividade
Na
metade do ano, Júlia descumpriu o acordo e parou de frequentar a escola. A mãe
dela e eu a interpelamos sobre o descumprimento, e ela disse que não aguentava
mais. Júlia não sofria bullying na escola. Tirava boas notas em todas as
disciplinas e colecionava absurdos ditos por suas professoras, como a professora
de artes que os obrigava a fazerem orações antes da aula ou outra professora que
dizia que enquanto eles (os alunos) não tivessem renda e não se sustentassem,
"não tinham que dar opiniões".
Diante
da legitimidade do que a Júlia nos trazia sobre sua relação com a escola, da
descrença na possibilidade de espaços institucionais escaparem dessa lógica
perversa, percebemos que o acordo que havíamos feito era abusivo, pois
compreendia a Júlia estar disposta a suportar uma violência (assim ela sentia,
logo, era uma violência) apenas por que a mãe dela e eu ainda não tínhamos
confiança de como seria sua educação fora da escola.
Na
metade do ano de 2014 então, Júlia deixou de frequentar a escola, permanecendo
apenas vinculada à oficina de teatro, a única atividade que lhe interessava, que
acabaria com uma mostra teatral em um mês. Após isso, cancelamos sua matrícula
na escola.
Os
percursos de aprendizado da Júlia desde então tem sido definidos por ela mesma e
meu papel e da mãe dela tem sido o de observar, escutar, conversar e facilitar o
acesso aos recursos necessários para que seus projetos se desenvolvam. O acesso
às redes de aprendizado construídas ao longo desse tempo tem sido um recurso
crucial nesse sentido.
Nessa
caminhada, estamos conhecendo melhor a nossa filha. Júlia está gradualmente
recuperando sua autonomia e se responsabilizando por seu próprio aprendizado.
Seus projetos vão adquirindo cada vez mais complexidade e vão mesmo exigindo
conhecimentos avançados, que ela sequer estaria aprendendo na escola.
Seus
projetos não acontecem apenas em casa. Aliás, a proposta da desescolarização é
que o aprendizado se dê na relação com a diversidade, em redes solidárias de
apoio mútuo. Então, Júlia convive com a diversidade e aprende na diversidade,
nos conflitos, nos estranhamentos, no diálogo.
Mas
nem tudo é alegria na desescolarização...
A
lei brasileira é ambígua no que tange à permanência na escola. Enquanto
dispositivos como a Constituição e a Declaração Universal dos Direitos do Homem
(que tem valor supra legal no Brasil) garantem o direito à educação e a primazia
da família na escolha da forma como se dará educação dos filhos, leis como a LDB
(Lei de Diretrizes e Bases da Educação) e o ECA (Estatuto da Criança e do
Adolescente) estabelecem a obrigatoriedade de matrícula em instituição formal de
ensino e o CP (Código Penal) indica penas como detenção e multa para mães e pais
que não matricularem os filhos entre 4 e 17 anos em alguma escola regular. A
interpretação que tem prevalecido nos casos de educação domiciliar e
desescolarização no Brasil tem sido a da obrigatoriedade e não encontrei nenhum
caso de julgamento favorável. Essa interpretação se dá com base na crença de que
estar fora da escola formal caracteriza a alienação do direito à educação.
No
estado do Rio Grande do Sul, um sistema conhecido como FICAI gera uma rede de
informações que comunica ao poder público a infrequência escolar e este aciona a
família, através do trabalho do CT (Conselho Tutelar), para verificar a situação
de infrequência.
Fomos
então intimados pelo CT para uma conversa. Essa conversa se deu em novembro de
2014 e foi uma experiência kafkiana. Três conselheiros, muito pouco interessados
nas particularidades de nosso caso, tentaram nos convencer da legitimidade da
obrigação de frequência à escola. Não obtendo resultado, nos encaminharam para a
Promotoria da Infância e Juventude do Ministério Público.
Ontem
fomos intimados pela promotoria a prestar esclarecimentos e apresentar
comprovantes de frequência escolar em 2014 e matrícula em estabelecimento formal
de ensino em 2015. Temos o prazo de 10 dias para fazer isso. Sei que o próximo
passo é, no caso de desacordo, a promotoria representar judicialmente contra o
que é classificado como "abandono intelectual" e, a partir de então, o processo
começa a correr na esfera judicial.
Não
permitiremos sermos coagidos por imposições legais sem fundamento. A
universalização da interpretação legal pela obrigatoriedade da matrícula escolar
silencia as diferenças de quem efetivamente se responsabiliza pela educação dxs
filhos, promove uma tutela excessiva que compete com os direitos básicos das
pessoas e com a liberdade individual e coletiva, e dificulta a organização e
ação de formas autônomas de aprendizado livre.
Reconhecemos
a importância dos dispositivos legais, no presente momento de nossa sociedade,
para assegurar que crianças e adolescentes não sejam privados de experiências de
aprendizado significativas e de convívio saudável em comunidade. Entretanto,
julgamos que não reconhecer as particularidades de cada caso e as mudanças nos
métodos de aprendizagem e aplicar uma solução legal padronizada é uma completa
distorção da finalidade da justiça. É uma forma de enrijecer a dinâmica social
em um ponto epistemológico já há muito superado.
Amigos
queridos, gostaria de, dado o tamanho do desafio e da luta que teremos pela
frente, pedir o apoio de vocês nessa jornada. Aqueles de vocês que solidarizarem
com nossa história, peço ajuda na indicação de advogado que queira tratar do
nosso caso na esfera judicial. Também para aqueles que puderem de alguma maneira
relatar como enxergam nosso compromisso com a educação, adicionaremos tudo no
dossiê que estamos preparando para justificar nossa escolha. Outra forma de
ajudar é participando de nossas redes, propondo atividades, participando de
nossos encontros e ajudando a construir um mundo onde aprender seja efetivamente
direito e responsabilidade de todos, e não um serviço, commodity ou produto
industrial padronizado e obrigatório.
Agradeço
muito a todos vocês que têm participado desse percurso lindo e desafiador.
Saúde,
amor e anarquia!
Simone G de
Lima
Laboratório Ágora
Psyché
Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento , IP
Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento , IP
Universidade de Brasília
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