Não é dinheiro que falta na periferia, diz criador de sarau literário em SP
São 15 anos de histórias recitadas e compartilhadas na periferia de São Paulo, nas vozes de um mundo quase que desconexo do centro. Elas se reúnem toda semana no Sarau da Cooperifa, criado pelo poeta Sérgio Vaz ‘no outro lado da ponte’, como se diz na zona sul paulistana.
O escritor de 52 anos recebeu a reportagem do UOL em sua casa, no Taboão da Serra (Grande São Paulo), para falar sobre os desafios do movimento cultural iniciado por ele e o amigo Marco Pezão, em 2001, na região próxima ao Jardim Ângela, que já foi considerada uma das mais violentas do mundo pela ONU.
A Cooperifa: Por que poesia em um bar?
“Quando eu criei a Cooperifa numa fábrica abandonada [no Taboão da Serra], junto com outros malucos, a gente não tinha muitas opções de lazer nem de cultura na comunidade, nas quebradas. O único espaço público que a gente tinha eram o bar e a igreja”, diz Vaz.
Ele já era poeta, tinha livros publicados e queria um lugar para ler seus textos e trocar ideias. O Sarau da Cooperifa nasceu assim, em um galpão, depois passou para um bar no Taboão (fechado cerca de um ano e meio depois), até que se instalou no bar do Zé Batidão, no Jardim Guarujá (zona sul), de onde nunca mais saiu.
Toda noite de terça-feira, o boteco recebe poetas, cantores –iniciados ou iniciantes– e muita gente interessada em ouvir o que outros têm a dizer.
Quem quiser se apresentar, primeiro coloca o nome na lista e espera ser chamado para usar o microfone. Para os que vão assistir, “o silêncio é uma prece”, como se costuma dizer ali. É assim que funciona o encontro literário.
A gente não desconfiava do que estava fazendo. A gente estava ressignificando o bar.
A região do Jardim Guarujá também é o lugar onde o poeta cresceu e fica a mais ou menos 25 km do centro de São Paulo. É vizinha do Jardim Ângela, que em 1996 foi indicado pelas Nações Unidas como o local mais violento do planeta.
“A gente não desconfiava do que a gente estava fazendo, a gente estava ressignificando o bar. O bar sempre foi o nosso centro cultural, nós nunca demos bola pra ele. Porque é lá que ocorrem as reuniões para a comunidade de bairro, é pra lá que as pessoas vão depois do trabalho, onde se reúnem pra falar de futebol, de música, onde tem samba, onde tem forró. Faltava a gente ter humildade de reconhecer que aquele era o nosso espaço. Se é o bar que nós temos, então é o bar que nós vamos transformar.”
Por um bom tempo, o sarau foi realizado sempre às quartas-feiras, mas ficava tão lotado, com as pessoas tomando a calçada e o meio da rua, que foi preciso mudar o dia da semana.
“A gente não percebeu que outras pessoas, em outros lugares, estavam pensando como a gente. Faltava um lugar. A gente não sabia a força que estava já acumulada [nas pessoas]. A gente estava sentado em cima de urânio, faltava enriquecê-lo. Foi bem isso, a gente foi enriquecendo o urânio.”
A pobreza intelectual
O significado de ‘pobreza’, diz Vaz, uma palavra associada constantemente à periferia, não tem a ver com o carro na garagem nem com a conta no banco. E isso ele descobriu só na adolescência.
Se o centro tem, nós temos que ter também.
“Quando eu fui ao Bixiga pela primeira vez [bairro na região central de São Paulo], nos anos 1980, foi a primeira vez que eu tive noção da pobreza. Porque eu tive uma infância rica, apesar da simplicidade, de liberdade e de brincadeiras. Quando eu cheguei à [rua] Treze de Maio e vi aqueles bares, aquelas pessoas circulando, livraria, o cineclube do Bixiga, eu falei: ‘Caramba, bicho! Que coisa mais linda! Por que é que a gente não tem isso?’ Mas eu não fiquei com raiva, eu fiquei com inveja. ‘Se o centro tem, nós temos que ter também’, essa era a minha ideia.”
O segundo estalo veio alguns anos mais tarde, com o lançamento de seu primeiro livro, em 1988.
“Eu tinha noção dos problemas físicos, estruturais da periferia. Mas não sabia que a gente tinha esse problema intelectual. Essa distância do livro, esse desapego à palavra, à literatura, à poesia.”
É diferente
“É diferente porque nós ainda estamos conquistando, ainda estamos lutando por coisas para sermos considerados como gente. Nós sofremos racismo, sofremos preconceito, a gente está nas piadas, pela cor da pele, pela situação econômica. Não se reconhece o ser humano da periferia, e sim a periferia como um todo. Nós somos números [para o poder público], não seres humanos. (…) O que a gente precisa é que o Estado nos reconheça como brasileiros. Da mesma cidade, da mesma língua, da mesma pele, que paga o mesmo imposto.”
O estigma do fracasso: Como é sentida esta diferença entre o centro e a periferia?
“É difícil ser feliz sem sonhar. Eles roubam isso da gente, não é o dinheiro. Quando a gente fala de infraestrutura, você vai ter, mas não vai ter total. ‘Eu vou te dar educação, mas não vai ser aquela. Eu vou te dar lazer e cultura, mas nem fica sonhando em montar uma banda’. Acima de tudo, o que eles estão roubando do país é o sonho, de nação, de pátria. A periferia é quem sofre mais, mas todo mundo sofre, ainda que não saiba.”
O que ainda falta?
“O grande desafio é tirar das pessoas o fracasso que nos foi imposto. O meu nome não pode estar aliado ao sucesso, ao dinheiro, ao bem-estar. A gente precisa perder isso, e colocar no lugar um rótulo de vencedor. É por isso que é importante falar dos Racionais, do Emicida, do rap nacional, do funk, do samba. Essas pessoas são vencedoras. A gente não pode ter vergonha de vencer, como se tivesse roubado de alguém. Temos que ser inspiração.”
Uma das conquistas marcantes recentes, na opinião do escritor, é a parte pobre da população ter conseguido acesso a mais bens materiais. Mas, para ele, mais importante do que dar o poder de compra é fazer com que o cidadão periférico compreenda que pode ser alguém que vence. E Vaz acredita que não virá de fora da periferia o incentivo para evoluir.
A gente está fazendo filho, mas quer ter direito ao gozo. É isso que as pessoas não entendem.
“Um dos gritos mais fortes que a periferia deu foi com o nascimento do hip hop aqui no Brasil. Foi quando a periferia se assumiu: ‘eu posso, eu sou possível, sou negro, e daí? Sou da favela, e daí?’ Quem tem que ter vergonha é o governo, não somos nós. (…) Tudo que acontece neste país é feito por gente trabalhadora, da classe média, gente rica, nós fazemos parte disso também. Mas a gente também quer gozar, não só fazer filho. A gente está fazendo filho, mas a gente quer ter direito ao gozo. É isso que as pessoas não entendem. Parece que fecharam a panela e não entra mais ninguém.”
O pensamento crítico: O que mudou nesses 15 anos?
“Falando da Cooperifa, mudou um pouco a autoestima. Nós crescemos num lugar que era conhecido só pelo Gil Gomes [repórter policial do programa de TV ‘Aqui Agora’], pelo Afanásio Jazadji [jornalista policial e ex-deputado estadual], pelo [jornal] Notícias Populares. A referência que a gente tinha do nosso bairro era quando matava-se ou morria alguém. Agora é diferente: ‘eu moro onde tem o Sarau da Cooperifa, onde fazem o Cinema na Laje’. A referência mudou.”
Qual é o benefício da autoestima?
“É o pensamento crítico. Você começa a questionar por que é que você mora em um barraco de madeira e o cara mora na mansão. ‘Por que aquele cara foi fazer faculdade e eu não fui?’ (…) Nós estamos vivendo a nossa Primavera de Praga, é a nossa Nouvelle Vague. Só que a gente quer mostrar para os nossos vizinhos, pro cara do baile, pro cara da rua.”
Como fica o contraste entre cultura e violência?
“É uma palavra da moda, mas é o empoderamento: ‘estou vivo e quero fazer valer a minha existência, então vou brigar um pouco’. A cultura tem esse poder de fazer cobranças. A si e aos outros. O Raul Seixas fala: ‘falta cultura pra cuspir na estrutura’. A gente precisa ter cultura para cuspir na estrutura.”
O que foi mais difícil nesses 15 anos?
“O mais difícil foi conscientizar as pessoas do poder da palavra, do poder do livro. A importância da literatura, que a literatura não pode mais ser o pão do privilégio. Três anos atrás, nós fizemos uma campanha na comunidade, ‘Natal com livros’, distribuímos 12 mil livros. Mesmo de graça as pessoas não queriam o livro. O mais difícil é isso, é fazer com que a pessoa entenda que ela não é responsável por ser alienada, por aquela ignorância que ela está sentindo. E nada de pedir para Deus o que é obrigação dos políticos.”
O escritor de 52 anos recebeu a reportagem do UOL em sua casa, no Taboão da Serra (Grande São Paulo), para falar sobre os desafios do movimento cultural iniciado por ele e o amigo Marco Pezão, em 2001, na região próxima ao Jardim Ângela, que já foi considerada uma das mais violentas do mundo pela ONU.
A Cooperifa: Por que poesia em um bar?
“Quando eu criei a Cooperifa numa fábrica abandonada [no Taboão da Serra], junto com outros malucos, a gente não tinha muitas opções de lazer nem de cultura na comunidade, nas quebradas. O único espaço público que a gente tinha eram o bar e a igreja”, diz Vaz.
Ele já era poeta, tinha livros publicados e queria um lugar para ler seus textos e trocar ideias. O Sarau da Cooperifa nasceu assim, em um galpão, depois passou para um bar no Taboão (fechado cerca de um ano e meio depois), até que se instalou no bar do Zé Batidão, no Jardim Guarujá (zona sul), de onde nunca mais saiu.
Toda noite de terça-feira, o boteco recebe poetas, cantores –iniciados ou iniciantes– e muita gente interessada em ouvir o que outros têm a dizer.
Quem quiser se apresentar, primeiro coloca o nome na lista e espera ser chamado para usar o microfone. Para os que vão assistir, “o silêncio é uma prece”, como se costuma dizer ali. É assim que funciona o encontro literário.
A gente não desconfiava do que estava fazendo. A gente estava ressignificando o bar.
A região do Jardim Guarujá também é o lugar onde o poeta cresceu e fica a mais ou menos 25 km do centro de São Paulo. É vizinha do Jardim Ângela, que em 1996 foi indicado pelas Nações Unidas como o local mais violento do planeta.
“A gente não desconfiava do que a gente estava fazendo, a gente estava ressignificando o bar. O bar sempre foi o nosso centro cultural, nós nunca demos bola pra ele. Porque é lá que ocorrem as reuniões para a comunidade de bairro, é pra lá que as pessoas vão depois do trabalho, onde se reúnem pra falar de futebol, de música, onde tem samba, onde tem forró. Faltava a gente ter humildade de reconhecer que aquele era o nosso espaço. Se é o bar que nós temos, então é o bar que nós vamos transformar.”
Por um bom tempo, o sarau foi realizado sempre às quartas-feiras, mas ficava tão lotado, com as pessoas tomando a calçada e o meio da rua, que foi preciso mudar o dia da semana.
“A gente não percebeu que outras pessoas, em outros lugares, estavam pensando como a gente. Faltava um lugar. A gente não sabia a força que estava já acumulada [nas pessoas]. A gente estava sentado em cima de urânio, faltava enriquecê-lo. Foi bem isso, a gente foi enriquecendo o urânio.”
A pobreza intelectual
O significado de ‘pobreza’, diz Vaz, uma palavra associada constantemente à periferia, não tem a ver com o carro na garagem nem com a conta no banco. E isso ele descobriu só na adolescência.
Se o centro tem, nós temos que ter também.
“Quando eu fui ao Bixiga pela primeira vez [bairro na região central de São Paulo], nos anos 1980, foi a primeira vez que eu tive noção da pobreza. Porque eu tive uma infância rica, apesar da simplicidade, de liberdade e de brincadeiras. Quando eu cheguei à [rua] Treze de Maio e vi aqueles bares, aquelas pessoas circulando, livraria, o cineclube do Bixiga, eu falei: ‘Caramba, bicho! Que coisa mais linda! Por que é que a gente não tem isso?’ Mas eu não fiquei com raiva, eu fiquei com inveja. ‘Se o centro tem, nós temos que ter também’, essa era a minha ideia.”
O segundo estalo veio alguns anos mais tarde, com o lançamento de seu primeiro livro, em 1988.
“Eu tinha noção dos problemas físicos, estruturais da periferia. Mas não sabia que a gente tinha esse problema intelectual. Essa distância do livro, esse desapego à palavra, à literatura, à poesia.”
É diferente
“É diferente porque nós ainda estamos conquistando, ainda estamos lutando por coisas para sermos considerados como gente. Nós sofremos racismo, sofremos preconceito, a gente está nas piadas, pela cor da pele, pela situação econômica. Não se reconhece o ser humano da periferia, e sim a periferia como um todo. Nós somos números [para o poder público], não seres humanos. (…) O que a gente precisa é que o Estado nos reconheça como brasileiros. Da mesma cidade, da mesma língua, da mesma pele, que paga o mesmo imposto.”
O estigma do fracasso: Como é sentida esta diferença entre o centro e a periferia?
“É difícil ser feliz sem sonhar. Eles roubam isso da gente, não é o dinheiro. Quando a gente fala de infraestrutura, você vai ter, mas não vai ter total. ‘Eu vou te dar educação, mas não vai ser aquela. Eu vou te dar lazer e cultura, mas nem fica sonhando em montar uma banda’. Acima de tudo, o que eles estão roubando do país é o sonho, de nação, de pátria. A periferia é quem sofre mais, mas todo mundo sofre, ainda que não saiba.”
O que ainda falta?
“O grande desafio é tirar das pessoas o fracasso que nos foi imposto. O meu nome não pode estar aliado ao sucesso, ao dinheiro, ao bem-estar. A gente precisa perder isso, e colocar no lugar um rótulo de vencedor. É por isso que é importante falar dos Racionais, do Emicida, do rap nacional, do funk, do samba. Essas pessoas são vencedoras. A gente não pode ter vergonha de vencer, como se tivesse roubado de alguém. Temos que ser inspiração.”
Uma das conquistas marcantes recentes, na opinião do escritor, é a parte pobre da população ter conseguido acesso a mais bens materiais. Mas, para ele, mais importante do que dar o poder de compra é fazer com que o cidadão periférico compreenda que pode ser alguém que vence. E Vaz acredita que não virá de fora da periferia o incentivo para evoluir.
A gente está fazendo filho, mas quer ter direito ao gozo. É isso que as pessoas não entendem.
“Um dos gritos mais fortes que a periferia deu foi com o nascimento do hip hop aqui no Brasil. Foi quando a periferia se assumiu: ‘eu posso, eu sou possível, sou negro, e daí? Sou da favela, e daí?’ Quem tem que ter vergonha é o governo, não somos nós. (…) Tudo que acontece neste país é feito por gente trabalhadora, da classe média, gente rica, nós fazemos parte disso também. Mas a gente também quer gozar, não só fazer filho. A gente está fazendo filho, mas a gente quer ter direito ao gozo. É isso que as pessoas não entendem. Parece que fecharam a panela e não entra mais ninguém.”
O pensamento crítico: O que mudou nesses 15 anos?
“Falando da Cooperifa, mudou um pouco a autoestima. Nós crescemos num lugar que era conhecido só pelo Gil Gomes [repórter policial do programa de TV ‘Aqui Agora’], pelo Afanásio Jazadji [jornalista policial e ex-deputado estadual], pelo [jornal] Notícias Populares. A referência que a gente tinha do nosso bairro era quando matava-se ou morria alguém. Agora é diferente: ‘eu moro onde tem o Sarau da Cooperifa, onde fazem o Cinema na Laje’. A referência mudou.”
Qual é o benefício da autoestima?
“É o pensamento crítico. Você começa a questionar por que é que você mora em um barraco de madeira e o cara mora na mansão. ‘Por que aquele cara foi fazer faculdade e eu não fui?’ (…) Nós estamos vivendo a nossa Primavera de Praga, é a nossa Nouvelle Vague. Só que a gente quer mostrar para os nossos vizinhos, pro cara do baile, pro cara da rua.”
Como fica o contraste entre cultura e violência?
“É uma palavra da moda, mas é o empoderamento: ‘estou vivo e quero fazer valer a minha existência, então vou brigar um pouco’. A cultura tem esse poder de fazer cobranças. A si e aos outros. O Raul Seixas fala: ‘falta cultura pra cuspir na estrutura’. A gente precisa ter cultura para cuspir na estrutura.”
O que foi mais difícil nesses 15 anos?
“O mais difícil foi conscientizar as pessoas do poder da palavra, do poder do livro. A importância da literatura, que a literatura não pode mais ser o pão do privilégio. Três anos atrás, nós fizemos uma campanha na comunidade, ‘Natal com livros’, distribuímos 12 mil livros. Mesmo de graça as pessoas não queriam o livro. O mais difícil é isso, é fazer com que a pessoa entenda que ela não é responsável por ser alienada, por aquela ignorância que ela está sentindo. E nada de pedir para Deus o que é obrigação dos políticos.”
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