Milton Hatoum afirma que o maior patrimônio é o bom leitor
Nélio Barbosa - Correio de Uberlândia - 11/09/2016
O ofício é escrever e o desafio é captar os dramas universais que atingem o ser humano. Para Milton Hatoum, a literatura não é um jogo de palavras, mas uma forma de conhecimento que o leva a expor um pouco da própria essência nos enredos dos romances, contos, ou crônicas que escreve. O premiado escritor manauense é presença confirmada no 5º Festival Literário de Araxá (Fliaraxá), em que será o homenageado.
O evento acontece entre os dias 14 e 18 deste mês na cidade mineira, com entrada franca. Suas obras são alvo de adaptações para TV, cinema e histórias em quadrinhos. Porém, com quase 30 anos de carreira literária, o autor revela que tudo foi inesperado e que seu maior patrimônio são seus bons leitores.
São quatro romances publicados e um quinto em produção. No trabalho de Hatoum, as memórias e lembranças do autor se fundem numa narrativa que tem como pano de fundo as experiências vividas em Manaus. “Tento escrever aquilo que de fato diz alguma coisa dentro de mim. Minhas inquietações e meus questionamentos diante da vida ou da situação política de meu País”, afirma.
Antes de escrever, a leitura de outras obras e, sobretudo, os clássicos autores, como Machado de Assis, Joseph Conrad, William Faulkner e Shakespeare foram fundamentais para Hatoum. Porém, ao finalizar a leitura “Grande Sertão: Veredas”, do mineiro Guimarães Rosa, o escritor sofreu um bloqueio criativo que quase o impediu de seguir na carreira literária. “Para mim, essa é a maior obra da nossa literatura. É ousado e fala de temas como a vida, a metafísica, a religião. Após terminar a leitura eu pensei: por que escrever depois disso? Faz sentido escrever alguma coisa?”, diz.
Com uma linguagem marcante, enredos complexos e o aprofundamento nos dramas familiares, Hatoum é constantemente comparado aos grandes escritores do Brasil e do mundo, de Graciliano Ramos a Marcel Proust. Mas o autor foge das comparações e acredita que seu trabalho apenas traduz o seu próprio modo de ser. “Não saberia escrever algo que não vivenciei. Essas comparações são exageradas. Fico feliz, pois são leitores que foram buscar informações nas minhas influências. É uma honra, mas, certamente não mereço”, afirma.
Adaptações
Os romances e contos de Milton Hatoum também mexem com produtores e artistas de outras mídias. Como exemplo, a obra “Dois irmãos” foi adaptada para o formato das histórias em quadrinhos pelos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá, e recebeu, no último mês, o Prêmio Eisner, considerado o Oscar dos quadrinhos. A mesma obra virou minissérie da Rede Globo e estreará em janeiro de 2017, sob a direção de Luiz Fernando Carvalho. “Sempre tive muita sorte com adaptações. O Fábio e o Gabriel trabalharam quatro anos nessa história. Viajaram até Manaus, conversaram muito comigo e o resultado foi maravilhoso. Eu vi o primeiro capítulo da minissérie e é deslumbrante também. Chorei um pouco, pois vi ali alguns momentos da minha infância e juventude”, diz.
Hatoum conta ainda que deixa os roteiristas e produtores livres para trabalharem diretamente nas suas obras. “Eu não imaginava nada disso. Apenas escrevia, pensava no conceito de personagens e na passagem do tempo das histórias”, afirma.
Novo trabalho
Em 2008, Hatoum publicou seu último romance, “Órfãos do Eldorado”. Agora, trabalha há oito anos em um novo projeto. Sob o título provisório de “O lugar mais sombrio”, a ser divido em dois volumes. O primeiro volume é ambientado em Brasília e São Paulo e tem como pano de fundo o período da Ditadura Militar (1964-1985), mas não trata-se de um romance político. “São histórias de vida de vários personagens. É uma pesquisa sobre a vida desses personagens. A fórmula é bem diferente dos meus outros romances. Esse ano não vou terminar nada, mas, quem sabe no ano que vem? Antes que ele acabe comigo”, diz.
Milton Hatoum diz que continua exigente com o próprio trabalho e que ninguém escreve para ser best-seller
CORREIO DE UBERLÂNDIA – Em quase 30 anos de vida literária, com inúmeros prêmios, adaptações de obras e traduções, o que mudou em Milton Hatoum enquanto autor?
MILTON HATOUM – O escritor não pensa muito nessas coisas. Tudo isso aconteceu ao longo do tempo, desde 1989 quando publiquei meu primeiro romance. Continuo exigente com a linguagem, com meu trabalho. Minha exigência é quase doentia, quase um caso clínico, por isso que publico pouco. Fico contente por ter muitos leitores e bons leitores com o alcance de alguns romances. No fundo é o que todo escritor quer. Ninguém escreve para ser best-seller, a não ser aqueles que só pensam nisso. Muda alguma coisa na minha própria obra. Ela começou com um relato íntimo, da memória, com narradores que falavam do passado. Depois de um drama familiar que expandiu para a cidade e, por fim, para o País. E no romance que estou escrevendo, a Amazônia já não aparece mais, não é ambientado lá.
De que formas as efervescências políticas e os tempos de incertezas atuais lhe atingem?
Acredito que atinge qualquer pessoa com sensibilidade política. Acompanho tudo isso de alguma forma e escrevo crônicas sobre a política brasileira no jornal “Estado de S. Paulo”. Nunca diretamente, mas com viés crítico. Isso atinge de certa forma o que estou escrevendo. O novo romance fala de um grupo de jovens que viveram no período da ditadura. Há algumas semelhanças políticas entre aquele momento e esse, como a violência da polícia. Isso me assombra um pouco. Não consigo ficar alheio ao que está acontecendo. No entanto, não defendo e nunca militei em nenhum partido. A posição do intelectual deve ser independente. Sempre independente.
Tolstoi dizia que “canta a tua aldeia e serás universal”. Isso se encaixa na sua obra?
Hoje em dia está na moda a globalização, alguns escritores escrevem sobre qualquer lugar e mesmo sem a experiência desses lugares. Eu vivi a minha infância em um lugar muito específico. Como escritor do Amazonas eu tento me aprofundar nas questões locais para atingir o universal, uma dimensão mais geral.
Qual a sua avaliação sobre o mercado editorial brasileiro?
Cresceu muito nos últimos anos com um demanda diferente daquela de quando eu comecei. Havia, ao contrário de hoje, muitos suplementos literários de peso. Temos muitas universidades e isso fez com que aumentassem o público leitor.
Pesquisas e estudos apontam um baixo índice de leitura dos brasileiros em relação a outros países. A que você atribui esse desempenho?
Isso se dá, basicamente, por causa da qualidade da nossa escola pública. O jovem brasileiro, de modo geral, não tem acesso à literatura. A escola é precária, o ensino é precário e os professores têm um salário miserável. Não há estímulo. E muitas escolas não possuem bibliotecas ou não têm bons livros nela. Essa é a razão, a grande questão nacional. Nossos políticos fecham os olhos para isso.
Qual a sua análise em relação à produção literária no Brasil atualmente?
É muito diversificado. Há bons escritores desde a minha geração. É difícil falar de muitos. Recebo muitas publicações, só não tenho mais idade para ler tudo.
Quais são os desafios enfrentados pelos jovens escritores no Brasil?
Falta maturidade para os jovens. É preciso esperar um pouco para começar a escrever. Os romances falam sobre a passagem do tempo, por isso, é fundamental esperar o tempo passar. O desafio ainda é ler com calma os bons livros. Eu sou um péssimo conselheiro, mas a literatura pede paciência, sobretudo o romance, que exige reflexão. Não acredito numa espontaneidade, nessa coisa apressada. Para um escritor jovem, eu daria meu exemplo. Eu li muito antes de começar a escrever. Pensei muito no que escrever, no que me tocava profundamente. Às vezes, você escreve 20 livros e não escreve nenhum. Ou escreve um e já é um grande livro. O jovem não deve se apressar. Com o tempo, ele vai encontrar sua razão, ou “desrazão”, para escrever seu livro.
Diante de todas as suas obras publicadas até aqui, qual é sua obra-prima, no seu ponto de vista? Por quê?
Sei que o “Dois Irmãos” tem um alcance enorme. Mas eu mesmo não tenho preferência. O que fiz com cada um deles foi escrever com toda minha energia e paixão pela minha linguagem. O que posso dizer é que em nenhum deles eu fui desonesto com aquilo que quis fazer.
O evento acontece entre os dias 14 e 18 deste mês na cidade mineira, com entrada franca. Suas obras são alvo de adaptações para TV, cinema e histórias em quadrinhos. Porém, com quase 30 anos de carreira literária, o autor revela que tudo foi inesperado e que seu maior patrimônio são seus bons leitores.
São quatro romances publicados e um quinto em produção. No trabalho de Hatoum, as memórias e lembranças do autor se fundem numa narrativa que tem como pano de fundo as experiências vividas em Manaus. “Tento escrever aquilo que de fato diz alguma coisa dentro de mim. Minhas inquietações e meus questionamentos diante da vida ou da situação política de meu País”, afirma.
Antes de escrever, a leitura de outras obras e, sobretudo, os clássicos autores, como Machado de Assis, Joseph Conrad, William Faulkner e Shakespeare foram fundamentais para Hatoum. Porém, ao finalizar a leitura “Grande Sertão: Veredas”, do mineiro Guimarães Rosa, o escritor sofreu um bloqueio criativo que quase o impediu de seguir na carreira literária. “Para mim, essa é a maior obra da nossa literatura. É ousado e fala de temas como a vida, a metafísica, a religião. Após terminar a leitura eu pensei: por que escrever depois disso? Faz sentido escrever alguma coisa?”, diz.
Com uma linguagem marcante, enredos complexos e o aprofundamento nos dramas familiares, Hatoum é constantemente comparado aos grandes escritores do Brasil e do mundo, de Graciliano Ramos a Marcel Proust. Mas o autor foge das comparações e acredita que seu trabalho apenas traduz o seu próprio modo de ser. “Não saberia escrever algo que não vivenciei. Essas comparações são exageradas. Fico feliz, pois são leitores que foram buscar informações nas minhas influências. É uma honra, mas, certamente não mereço”, afirma.
Adaptações
Os romances e contos de Milton Hatoum também mexem com produtores e artistas de outras mídias. Como exemplo, a obra “Dois irmãos” foi adaptada para o formato das histórias em quadrinhos pelos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá, e recebeu, no último mês, o Prêmio Eisner, considerado o Oscar dos quadrinhos. A mesma obra virou minissérie da Rede Globo e estreará em janeiro de 2017, sob a direção de Luiz Fernando Carvalho. “Sempre tive muita sorte com adaptações. O Fábio e o Gabriel trabalharam quatro anos nessa história. Viajaram até Manaus, conversaram muito comigo e o resultado foi maravilhoso. Eu vi o primeiro capítulo da minissérie e é deslumbrante também. Chorei um pouco, pois vi ali alguns momentos da minha infância e juventude”, diz.
Hatoum conta ainda que deixa os roteiristas e produtores livres para trabalharem diretamente nas suas obras. “Eu não imaginava nada disso. Apenas escrevia, pensava no conceito de personagens e na passagem do tempo das histórias”, afirma.
Novo trabalho
Em 2008, Hatoum publicou seu último romance, “Órfãos do Eldorado”. Agora, trabalha há oito anos em um novo projeto. Sob o título provisório de “O lugar mais sombrio”, a ser divido em dois volumes. O primeiro volume é ambientado em Brasília e São Paulo e tem como pano de fundo o período da Ditadura Militar (1964-1985), mas não trata-se de um romance político. “São histórias de vida de vários personagens. É uma pesquisa sobre a vida desses personagens. A fórmula é bem diferente dos meus outros romances. Esse ano não vou terminar nada, mas, quem sabe no ano que vem? Antes que ele acabe comigo”, diz.
Milton Hatoum diz que continua exigente com o próprio trabalho e que ninguém escreve para ser best-seller
CORREIO DE UBERLÂNDIA – Em quase 30 anos de vida literária, com inúmeros prêmios, adaptações de obras e traduções, o que mudou em Milton Hatoum enquanto autor?
MILTON HATOUM – O escritor não pensa muito nessas coisas. Tudo isso aconteceu ao longo do tempo, desde 1989 quando publiquei meu primeiro romance. Continuo exigente com a linguagem, com meu trabalho. Minha exigência é quase doentia, quase um caso clínico, por isso que publico pouco. Fico contente por ter muitos leitores e bons leitores com o alcance de alguns romances. No fundo é o que todo escritor quer. Ninguém escreve para ser best-seller, a não ser aqueles que só pensam nisso. Muda alguma coisa na minha própria obra. Ela começou com um relato íntimo, da memória, com narradores que falavam do passado. Depois de um drama familiar que expandiu para a cidade e, por fim, para o País. E no romance que estou escrevendo, a Amazônia já não aparece mais, não é ambientado lá.
De que formas as efervescências políticas e os tempos de incertezas atuais lhe atingem?
Acredito que atinge qualquer pessoa com sensibilidade política. Acompanho tudo isso de alguma forma e escrevo crônicas sobre a política brasileira no jornal “Estado de S. Paulo”. Nunca diretamente, mas com viés crítico. Isso atinge de certa forma o que estou escrevendo. O novo romance fala de um grupo de jovens que viveram no período da ditadura. Há algumas semelhanças políticas entre aquele momento e esse, como a violência da polícia. Isso me assombra um pouco. Não consigo ficar alheio ao que está acontecendo. No entanto, não defendo e nunca militei em nenhum partido. A posição do intelectual deve ser independente. Sempre independente.
Tolstoi dizia que “canta a tua aldeia e serás universal”. Isso se encaixa na sua obra?
Hoje em dia está na moda a globalização, alguns escritores escrevem sobre qualquer lugar e mesmo sem a experiência desses lugares. Eu vivi a minha infância em um lugar muito específico. Como escritor do Amazonas eu tento me aprofundar nas questões locais para atingir o universal, uma dimensão mais geral.
Qual a sua avaliação sobre o mercado editorial brasileiro?
Cresceu muito nos últimos anos com um demanda diferente daquela de quando eu comecei. Havia, ao contrário de hoje, muitos suplementos literários de peso. Temos muitas universidades e isso fez com que aumentassem o público leitor.
Pesquisas e estudos apontam um baixo índice de leitura dos brasileiros em relação a outros países. A que você atribui esse desempenho?
Isso se dá, basicamente, por causa da qualidade da nossa escola pública. O jovem brasileiro, de modo geral, não tem acesso à literatura. A escola é precária, o ensino é precário e os professores têm um salário miserável. Não há estímulo. E muitas escolas não possuem bibliotecas ou não têm bons livros nela. Essa é a razão, a grande questão nacional. Nossos políticos fecham os olhos para isso.
Qual a sua análise em relação à produção literária no Brasil atualmente?
É muito diversificado. Há bons escritores desde a minha geração. É difícil falar de muitos. Recebo muitas publicações, só não tenho mais idade para ler tudo.
Quais são os desafios enfrentados pelos jovens escritores no Brasil?
Falta maturidade para os jovens. É preciso esperar um pouco para começar a escrever. Os romances falam sobre a passagem do tempo, por isso, é fundamental esperar o tempo passar. O desafio ainda é ler com calma os bons livros. Eu sou um péssimo conselheiro, mas a literatura pede paciência, sobretudo o romance, que exige reflexão. Não acredito numa espontaneidade, nessa coisa apressada. Para um escritor jovem, eu daria meu exemplo. Eu li muito antes de começar a escrever. Pensei muito no que escrever, no que me tocava profundamente. Às vezes, você escreve 20 livros e não escreve nenhum. Ou escreve um e já é um grande livro. O jovem não deve se apressar. Com o tempo, ele vai encontrar sua razão, ou “desrazão”, para escrever seu livro.
Diante de todas as suas obras publicadas até aqui, qual é sua obra-prima, no seu ponto de vista? Por quê?
Sei que o “Dois Irmãos” tem um alcance enorme. Mas eu mesmo não tenho preferência. O que fiz com cada um deles foi escrever com toda minha energia e paixão pela minha linguagem. O que posso dizer é que em nenhum deles eu fui desonesto com aquilo que quis fazer.
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