sexta-feira, 9 de outubro de 2015

É FÁCIL TIRAR CRIANÇA DA RUA COM LIVRO, DIZ PEDRO HERZ.

É fácil tirar criança da rua com livro, diz Pedro Herz

Gisele Vitória - Istoé

Pedro Herz escolheu ser livreiro por medo. Na década de 1970, temia pela ‘aventura’ da mãe, Eva Herz, em sair do pequeno negócio de aluguel de livros alemães para abrir, há 45 anos, a Livraria Cultura, no Conjunto Nacional, na Avenida Paulista. “Eu sonhava mesmo em estudar medicina. Ajudei amigos médicos em cirurgias. Fiz partos”, revela ele, aos 75 anos.
 
“Era na maternidade São Paulo, que nem existe mais. Ficava lá jogando baralho, comia o bife da meia noite no restaurante ao lado, e, na hora do aperto, os amigos médicos me pediam para ajudar.” Das lembranças dos plantões voluntários no hospital público, ficou o olho clínico. Junto com os filhos, ele cuida de seu negócio com a minúcia de quem maneja um bisturi. Pedro Herz, que não virou doutor, tornou-se o livreiro mais bem sucedido do Brasil. A Livraria Cultura se expandiu em 19 megalojas e, no ano passado, faturou R$ 500 milhões.

Herz também preside o Teatro Cultura Artística, destruído em um incêndio em 2008 e que será reconstruído neste semestre, com investimentos de R$ 140 milhões. “Vai ser um acontecimento. Talvez se torne melhor o teatro da América Latina, em termos técnicos”, diz. “Terá palco para óperas, balés e orquestra sinfônica.” O livreiro ainda estreou como apresentador do talk show “ComTexto”, no canal a cabo Arte 1, onde entrevista figuras do mercado editorial, na Livraria Cultura do shopping Iguatemi, em São Paulo.


Istoé - Num mundo veloz e tecnológico, está difícil parar para ler?
 
Pedro Herz - A indústria do entretenimento cresce, mas não dá para expandir o tamanho do dia. Não é mais possível. As pessoas têm menos tempo. Ler é uma atividade solitária que requer conforto e concentração. Eu estou lendo muito menos. Eu pifo. Chego em casa, pego meu livro, e acabo dormindo. Isso tem acontecido com todo mundo. As pessoas estão lendo menos. Você tem as redes sociais, os sites. Tudo é mais superficial. 
 
Istoé - Como o sr. avalia o mercado editorial, neste momento?
 
Pedro Herz - Devagar. A crise também avança sobre o mercado editorial. Não há quem não sinta a crise. A não ser os criminalistas que estão tentando soltar os presos da Operação Lava-Jato. Esses estão com muito serviço. 
 
Istoé - Mas a Cultura da Avenida Paulista está lotada.
 
Pedro Herz - Nem sempre são compradores. Talvez funcionários de alguma empresa em greve (risos). As pessoas vêm, mas isso não converte em vendas.
 
Istoé - Mas a Cultura faturou R$ 500 milhões no ano passado. 
 
Pedro Herz - Sim. Mas neste ano ainda não cumprimos a meta. Hoje não temos como expandir. São 19 unidades, 2.000 funcionários em dois turnos. trabalhamos domingo. É hora de pagar contas e olhar despesas com lupa. 
 
Istoé - Como vê o Brasil de 2015? 
 
Pedro Herz - O nepotismo e a corrupção no Brasil começaram com Pero Vaz de Caminha. Numa carta, ele pede para o rei de Portugal emprego para um parente. Comentava isso com Laurentino Gomes no meu talk show no Canal Arte 1 com gente do mercado editorial. Temos que quebrar o ciclo. Pergunto para amigos às vezes: o que funciona no Brasil? Imunização infantil, apuração eleitoral e arrecadação tributária. Não consigo dizer uma quarta coisa. 
 
Istoé - O sr. trabalha com a leitura. Vê perspectivas na educação?
 
Pedro Herz - Primeira providência: investir no professor e não no prédio. Pátria educadora é de novo fazer escola com telhado e quatro paredes. Educação não é isso. Não há boa formação de professores. E como formar leitores? O único lugar onde se forma leitores é em casa. Professor ajuda. Mas quem faz leitor é família. Pai, mãe. O bichinho que faz a pessoa ler é picado em casa. Meus filhos liam de ponta cabeça para me imitar. Esse exemplo não é dado. E aqueles que dão são teoricamente pessoas mais formadas, que estão tendo menos filhos. 
 
Istoé - O sr. presenteia meninos de rua com livros?
 
Pedro Herz - Pego livros que danificam e deixo no carro. Quando vem uma criança de rua pedir, dou o livro. Eles saem da rua em segundos. Em instantes tem três, quatro sentados juntos, folheando. Tirar criança da rua com livro é fácil. É vontade política de fazer. Vi muito essa cena. Eles param de pedir, vender e se voltam para o livro.
 
Istoé - A história da sua família tem a ver com a multiplicação da leitura. 
 
Pedro Herz - Minha mãe alugava livros para ajudar meu pai. Eles fugiram do nazismo em Berlim, chegaram aqui em 1939 (mostra os passaportes impecáveis, de 1935). Fugiram no último minuto. Nasci aqui. Meus avós foram mortos pelo nazismo. Nossos amigos eram judeus alemães e não tinham o que ler. Ela comprava livros alemães e alugava. Era como uma videolocadora, mas em 1947. As pessoas pagavam para ler como se paga filme para assistir. Aí a biblioteca virou a livraria Cultura, em 1969.
 
Istoé - Na vida de livreiro, o sr. coleciona histórias. Relembre alguma? 
 
Pedro Herz - Cada dia é um causo. Vinícius de Moraes lançou na Cultura do Conjunto Nacional o livro “Falso Mendigo”. Era década  de 70 e combinei, por telefone, o horário que ele viria. De vez em quando Vinicius se internava para tirar um pouco do uísque do sangue. Lembro quando liguei: “Vinicius, já arrumei um guaraná legal para você. E ele me interrompeu: “Para! Para! Tô cansado de ter saúde”. A imprensa me procurou e sugeri uma coletiva. Ele topou. A coletiva seria às 17h. Mas ele só surgiu duas horas depois. Os jornalistas estavam no andar superior, no meu escritório. Quando o vi, disse: “Pô, Vinícius estou quase apanhando”. E ele vem com essa pérola: “Pedrão, tinha muito botequim pelo caminho.”Para chegar ao andar superior, havia uma escadinha. Ele chegou com alguns uísques na cabeça e não conseguia subir. Então resolvemos: ele foi subindo e eu apoiei minhas mãos no traseiro dele. Num impulso, o empurrei. Essas mãos têm história (risos). Depois, sempre charmoso, ele atendeu a todos. Era uma grande figura.
 
Istoé - E os problemas na ditadura?
 
Pedro Herz - Gabeira lançou “O Que é Isso Companheiro” aqui. Era um mar de gente na calçada. Em 1982, José Yunes lançou o livro “Uma Lufada que Abalou São Paulo”. Era uma brincadeira com “Malufada”, dirigida ao Paulo Maluf, candidato nas eleições daquele ano. Maluf entrou na Justiça para impedir o lançamento. Com a casa cheia, apareceu um delegado dizendo que tinha ordem de encerrar a noite de autógrafo. Ordenou: “Ponha as pessoas para fora.” Mas não tinha ordem judicial. Liguei para a Jovem Pan e para a Globo. Da Globo, veio a Silvia Popovic como repórter. Lá pelas 21h chega um oficial de justiça. Aí tive que comunicar a ordem. A multidão cantou o Hino Nacional. Ele fez um termo de apreensão dos exemplares e acabou a noite. No dia seguinte, o delegado voltou. Pensei: pronto, agora serei preso. Ele propôs um café. Pedi para uma funcionária ligar para nosso advogado, e avisar que não sabia o que aconteceria. Aí explicou: “Também sou poeta. Escrevi um livro de poesia e queria editar.” Respirei. A conversa ficou amena. Imagina, eu estava tomando café com a mão trêmula, e descubro que o delegado estava lá para me confidenciar que era poeta? Expliquei tudo gentilmente e ele saiu agradecido. 
 
Istoé - Se essa livraria falasse...
 
Pedro Herz - Também aconteceram coisas tristes. Há alguns anos um louco matou um estudante dentro da livraria com um taco de basebol.  O menino estava abaixado vendo um livro na prateleira e o cara chegou por trás. Foi uma tragédia. O socorro e a polícia vieram rápido. O cara foi preso. Pelo que sei, está no manicômio judiciário. O menino era ilustrador e tinha pintado uma escultura de vaca da Cow Parede. A gente arrematou e doou o dinheiro para os pais. Ele ficou 10 meses na UTI do Hospital das Clínicas e faleceu. Tempos depois, a mãe moveu uma ação contra a livraria e contra mim. Alegou que devíamos ter proteção. Pediu R$ 2 milhões de indenização. Mas perdeu. 

Istoé - Algum encontro histórico aconteceu na livraria?
 
Pedro Herz - Apresentei a Clarice Herzog, mulher do Vlado, ao José Mindlin nos anos 2000. Mindlin era o secretário estadual da Cultura quando Wladimir Herzog foi morto pela ditadura. 
 
Istoé - Dos escritores que passaram por aqui, quem mais o emocionou?

Pedro Herz - José Saramago. Foi em 2008, um ano após a livraria da Paulista ser reinaugurada. Ele morreu logo depois. Ele e a Pilar, sua mulher, ficaram boquiabertos. “Isso é uma catedral”, disse. E escreveu no blog dele. Pedi autorização para reproduzir. O texto está no livro Cadernos de Saramago, de 2008. Ele escreveu: “A última imagem que levamos do Brasil é de uma bonita livraria. Uma catedral de livros. A Livraria Cultura é uma obra de arte.” Um prêmio Nobel de Literatura falar isso, emociona, né? Nos anos 1970, editoras me ofereciam livros de sacanagem e nunca me interessei. Uma vez o cara insistiu: “Isso vende na Avenida São João que nem água, 500 por dia”  Aí falei: “Sabe por que não compro? O pessoal da Av. São João lê sacanagem. O pessoal da Av. Paulista faz sacanagem”. Baixa qualidade nunca foi nossa praia.
 
Istoé - Que livros o marcaram?
 
Pedro Herz - Não tenho preferidos nem releio livro. Há tantos que não li, por que reler? Lembro do meu primeiro livro: “João Felpudo”. Uma tradução de um livro infantil alemão.  Há livros que odiei. Lendo “Ulisses”, James Joyce me chamou de idiota a vida inteira. Já perdi amigo porque indiquei uma obra que adoro, “Cem anos de solidão”, do Gabriel Garcia Marques. Ele dizia: “Você estragou minhas férias com essa porcaria que me indicou”. Livro tem personalidade própria. E, para interessar, depende do estado do leitor.
 
Istoé - Como viu a febre dos livros para colorir?
 
Pedro Herz - Torço para que essas pessoas um dia venham a ler. Dizem que é terapia. Acho que o leitor de verdade busca outra coisa para se entreter. Talvez seja mais barato que terapeuta. A gente vendeu que nem pão quente. Mas a febre acabou. O livro para colorir veio da indústria de lápis de cor e salvou muitas editoras da crise. A indústria editorial se aproveitou desse oportunismo. 
 
Istoé - E os livros digitais?
 
Pedro Herz - Vendemos e-book, livros eletrônicos, vendemos o aparelho Kobo com exclusividade no Brasil.  Mas o livro digital não vingou no Brasil. Representa 2% das nossas vendas. Mas o que mais vende na Livraria Cultura é o livro tradiconal, de papel mesmo.

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