FOLHAS DE MINAS GERAIS
Padre do
demônio e a primeira tipografia
Por Jairo Faria Mendes em 07/09/2004 na edição 293
"Padre,
tu és o demônio!", disse o bispo Cypriano ao padre José Joaquim Viegas de
Menezes, que tomou um susto. Mas era um elogio. O bispo completou: "Não
sabe que demônio não significa somente espírito mau, e que também quer dizer
astuto, sagaz, inteligente!"
O
bispo, o governador-geral e muitos outros eram admiradores do padre responsável
pela primeira impressão oficial nas Minas (1807), pela primeira tipografia
construída no país (1821) e a criação do primeiro jornal da província, O
Compilador Mineiro, em 1823.
Padre
Viegas era um homem brilhante. Apesar da saúde muito frágil, realizou grandes
feitos como intelectual, artista plástico e, principalmente, como amante das
artes gráficas. Viegas está quase esquecido e sabe-se muito pouco sobre ele. No
entanto, um distrito de Mariana, nas Minas Gerais, tem seu nome, apesar da
única relação do padre com a localidade é ter estudado lá na adolescência. O
poeta e líder da Inconfidência Cláudio Manoel nasceu no distrito, mas
preferiu-se homenagear o precursor da imprensa mineira.
O
que se conhece do padre deve-se a uma carta enviada, em 1851, por alguém que
apenas registrou suas iniciais, A.M., e que se dizia amigo de Viegas. A
correspondência foi encaminhada ao redator do Correio Official de Minas,
com data de 3 de janeiro de 1852, por José Rodrigo Duarte. No entanto, não se
sabe o porquê, a correspondência só foi publicada em 1859. A pessoa que encaminhou
a carta era muito influente, e mostrava-se preocupada com o registro da memória
de Viegas. Acredito que tenha sido José Rodrigo Lima Duarte, redator de
periódicos em Juiz de Fora, era médico e foi eleito deputado em sete
legislaturas, e uma vez senador. Também foi ministro da Marinha, e no final da
vida recebeu o título de visconde Lima Duarte. Uma cidade mineira, próxima a
Juiz de Fora, foi batizada com seu nome.
Na
carta é possível observar uma grande admiração ao padre, e a intenção de
homenageá-lo. O autor da correspondência também deixa claro que não tem todas
as informações necessárias para traçar a biografia de Viegas: "Me faltam
dados para bem desempenhá-la", diz. Ele começa descrevendo a impressão
calcográfica (utilizando chapas fixas de cobre) feita pelo padre a pedido do
governador em 1807. E descreve um diálogo entre Viegas e o governador, sobre o
qual faz uma observação: "Por muitas vezes ouvimos o finado (padre Viegas)
repetir esta conversação que tivera com o general". O diálogo mostra uma
relação de proximidade entre ambos, e termina com uma frase bem em que o
capitão-general diz que o padre não devia se preocupar com a proibição a
atividade de impressão. "Oh! Se é só isso, não se aflija, tomo sobre mim
toda a responsabilidade: mãos a obra, meu Padre".
Ao
lado do poder
Depois
a carta traz as informações conhecidas sobre o padre, desde seu nascimento,
quando ele foi abandonado pela mãe na porta de uma casa em Vila Rica. Essas
informações depois serão reproduzidas por Xavier da Veiga, na monografia A
imprensa em Minas Gerais (1807-1897), publicada em 1898 na Revista do
Arquivo Público Mineiro (ver artigo "O precursor dos estudos sobre
jornalismo em Minas").
A
correspondência descreve Viegas como uma pessoa tranqüila, piedosa e humilde.
Já na infância preferia os livros e o desenho (para o qual tinha grande
habilidade) às brincadeiras com as outras crianças. Mas alguns detalhes da
história do padre deixam claro que ele era muito sociável, inquieto
intelectualmente e ousado. Respondeu a processos civis, que o biógrafo diz
terem sido injustos: "Foram intentados por parte ou a instigações de
indivíduos a quem jamais ofendera, antes obsequiara sempre". Os motivos
apontados: "Pretendidas usurpações de direitos paroquiais, já por infundadas
pretensões de liberdade de escravos seus". Isso mostra um lado negativo de
Viegas, ser proprietário de escravos. Mas, claro, tem-se que pensar em Viegas
como um homem de seu tempo.
Alguns
aspectos da vida do padre mostram que ele, apesar de não ter uma militância política,
era conservador. Sempre esteve ao lado do poder, amigo do governador-general,
no período colonial, que dá depoimento elogioso a Viegas. Mas a maior prova de
sua tendência conservadora é sua participação na revolta, em 1833, nas Minas,
de caráter restaurador, ou seja, de apoio ao retorno de D. Pedro I.
No
Arco do Cego
O
biógrafo diz que Viegas não teve qualquer envolvimento. Mas, se contradiz ao
contar que, ao se restaurar a legalidade, o padre fugiu de Vila Rica
disfarçado, e depois foi condenado a seis dias de prisão. O padre recorreu.
Segundo a correspondência ele teria dito: "Nem a seis horas, nem a seis
segundos mesmo me sujeitarei, sem primeiro esgotar todos os recursos que
estiverem a meu alcance para mostrar-me tal como sou, isto é, inocente".
Num segundo julgamento, foi absolvido. No entanto, o padre parecia bem mais
preocupado com seu trabalho eclesial, artístico e intelectual, do que em
participar da vida política. Em Portugal, onde morou provavelmente de 1797 a
1802, teve uma convivência fraterna com frei Veloso, que dirigia a Oficina do
Arco do Cego, em Lisboa.
Frei
Veloso é uma das principais personalidades da história da imprensa
luso-brasileira, e era muito amigo do padre Viegas. Com o frei, Viegas aprendeu
muito sobre a arte da impressão, e até fez a tradução, do francês para o
português, do importante Tratado da gravura a água forte, e a buril, em
maneira negra com o modo de construir as prensas modernas, e de imprimir em
talho doce, que foi impresso no Arco do Cego.
Os
brasileiros que iam estudar em Portugal, e formavam um grupo de intelectuais,
tinham como ponto de encontro a Oficina do Arco do Cego. Por isso, certamente o
padre Viegas teve oportunidade de conviver com pessoas como Hipólito da Costa,
o criador do nosso primeiro jornal, o Correio Braziliense. Em Vila Rica,
a casa de Viegas sempre vivia cheia. A correspondência diz que ele gostava
muito de receber, principalmente os franceses. Um de seus hóspedes foi um
artista plástico francês chamado Palière, que o autor da carta chama de
"mestre da casa real", e que se entusiasmou com as pinturas do padre.
À
espera do pesquisador
O
relato deixa claro que Viegas era muito querido. Quando foi absolvido, em 1833,
houve festa em Vila Rica. E, em 1º de julho de 1841, quando "essa alma
benfazeja voou tranqüila à mansão dos justos", um grande número de pessoas
se comoveu.
Mais
informações sobre o padre Viegas podem ser encontradas em outros textos de
minha autoria, como "O precursor dos estudos sobre jornalismo em
Minas" [ver remissão abaixo] e "O precursor da imprensa
mineira" [apresentado no 2º Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho,
encontrado em (www.jornalismo.ufsc.br/redealcar/)].
Recentemente,
fiz uma visita a Mariana, nas Minas Gerais, e encontrei alguns documentos
manuscritos (e por isso de difícil leitura) sobre o padre Viegas, que
certamente trariam mais dados sobre sua contribuição à imprensa e ao jornalismo
brasileiro. Será trabalho para algum pesquisador persistente e interessado na
história de nossa imprensa explorar esse material.
Disponível
em
"Proeza
extraordinária"
A
monografia de Xavier da Veiga, publicada na Revista do Arquivo Publico,
nº 3, de 1898, com o título "A imprensa em Minas Gerais (1807-1897)",
faz nascer os estudos sobre jornalismo no estado. Com 80 páginas, o texto faz
um relato do primeiro século da imprensa nas Minas, e traz um inventário com as
publicações que surgiram nestes 100 anos.
O
estudo, até hoje, é utilizado por historiadores e pesquisadores do jornalismo.
Ninguém conseguiu superar Xavier da Veiga, sua monografia continua a principal
referência sobre a história da imprensa mineira. Surgiram registros e análises
de fatos isolados, de jornalistas ou da história do jornalismo em cidades das
Minas; mas faltam publicações que tenham um olhar "macro" sobre a
memória da imprensa no estado.
Xavier
da Veiga começa fazendo um rápido histórico, que passa pelo invento de
Gutenberg; a oficina de Antônio Isidoro da Fonseca, no Rio de Janeiro, fechada
em 1747; e os primeiros jornais brasileiros. No entanto, gasta apenas cinco
páginas para essa introdução, e entra no que lhe interessava, a memória da
imprensa nas Minas.
Ele
descreve com detalhes a primeira impressão feita nas Minas, em 1807, pelo padre
José Joaquim Viegas de Menezes. O poeta e cronista Diogo Pereira Vasconcelos
escreveu um canto panegírico (um poema) homenageando o governador da capitania,
Pedro Maria Xavier de Atayde. Apesar das atividades gráficas serem proibidas na
colônia, o governador quis ver o texto impresso, e procurou o padre Viegas, o
único que poderia atender a seu desejo.
Depois
de três meses de trabalho, o padre imprimiu um poema, utilizando uma técnica
chamada calcografia, que consiste no uso de chapas fixas de bronze. Esse é um
dos grandes momentos da imprensa brasileira. Ele é descrito por Sodré (1999)
como "proeza extraordinária para a colônia" (p. 34).
Um
erro repetido
Na
monografia também é feita rápida biografia do herói da imprensa mineira, o
padre Viegas. Ele, além da impressão calcográfica de 1807, foi responsável pela
primeira tipografia construída no país (trabalho iniciado em 1820). A
monografia descreve bem isso.
O
português Manoel José Barbosa Pimenta e Sal, residente em Vila Rica (que mais
tarde viraria Ouro Preto), costumava folhear o "Diccionario de Sciencias e
Artes", em francês [provavelmente o Dictionnaire des Sciences, des
Arts et de Métiers (1751-1777), de Diderot], dando atenção ao trecho que
descrevia uma tipografia. Um acaso feliz aproximou o português do padre Viegas,
que traduziu a parte referente à tipografia, e explicou como ela funcionava.
Depois, os dois resolveram juntos fundir os tipos e construir um prelo. Nessa
tipografia seriam impressos muitos jornais. Ela, certamente, foi decisiva no
nascimento e na evolução do jornalismo nas Minas.
A
monografia ignora um fato importante da biografia do padre Viegas. Foi ele também
o diretor do primeiro jornal do Estado, o Compilador Mineiro.
Para
falar do padre, é fácil identificar (embora não citado na monografia) que ele
utilizou como principal fonte um trabalho biográfico publicado no Correio
Official de Minas, de 10 a 13 de janeiro de 1859. Esse texto, apesar de bem
anterior ao de Xavier da Veiga, não pode ser classificado como um estudo sobre
a imprensa: é uma biografia, escrita no estilo do jornalismo da época,
rebuscada e com tom apologista, mas bem redigida.
No
entanto, Xavier da Veiga comete um erro, que muitos anos depois seria repetido
por Nelson Werneck Sodré, em História da imprensa no Brasil. Ele diz que
o primeiro jornal das Minas foi a Abelha do Itaculumy, criado em 1824.
No entanto, a primazia é do Compilador Mineiro, fundado um ano antes.
Inventário
da imprensa
Ao
citar os primeiros jornais da província, Abelha do Itaculumy (1824), o Compilador
Mineiro (de 1823, que a monografia diz ser de 1824, e sobre o qual o autor
mostra ter muitas dúvidas a respeito do local da impressão e de quem o
dirigia), ganha destaque o Universal. É fácil entender a ênfase dada ao Universal,
o primeiro jornal com expressão na província. Foi criado pelo polêmico político
Bernardo Vasconcelos, que o dirigiu até 1833. Depois o jornal mudou
radicalmente de posição política, e, em 1842, tomou uma das decisões mais
ousadas da história de nossa imprensa. Seu diretor, José Pedro Dias de
Carvalho, derreteu os tipos do jornal para fabricar balas para a revolução
liberal que estourava na província.
Em
seguida, vêm a descrição das primeiras localidades mineiras com jornais. Como
ele mostra, os jornais começaram em Ouro Preto, em 1823. A segunda localidade
foi São João Del Rei, que em 20 de novembro de 1827 ganhou o Astro de Minas,
considerado "brilhante" por Xavier da Veiga. Depois, o Arraial do
Tijuco (hoje cidade de Diamantina) ganhou o Echo do Serro, em 1828.
Em
1830, três localidades passaram a ter jornais: Mariana (Estrella Mariannense),
Serro (Sentinela do Serro, de Teófilo Otoni, seguindo a linha editorial
da Sentinela da Liberdade, de Cipriano Barata) e Pouso Alegre (Pregoeiro
Constitucional). Outros locais que ganharam publicação: Itambé do Serro (7º
lugar), Campanha (8º lugar), Sabará (9º lugar) e Caeté (10º lugar).
A
parte mais importante do trabalho de Xavier da Veiga vem depois, o inventário
da imprensa nos seus primeiros 100 anos. Em 34 páginas, ele lista as centenas
de publicações criadas nas Minas, no período, em 87 localidades.
A
grande obra
Pelo
inventário, é clara a grande importância de Ouro Preto neste primeiro século de
jornalismo. São listados 163 periódicos na cidade. Outros municípios com bom
número de publicações: São João Del Rei (41), Diamantina (45), Campanha (33),
Juiz de Fora (55) e Uberaba (57). Belo Horizonte, recém-inaugurada (em 12 de
dezembro de 1897), já tinha cinco periódicos listados por Xavier da Veiga.
O
inventário mostra que nas Minas algumas regiões povoadas tardiamente estavam
tendo uma imprensa muito forte, refletindo as grandes mudanças na região. Com a
decadência da exploração do ouro e diamantes, gradativamente, localidades que
cresceram com a mineração (Ouro Preto, São João Del Rei, Sabará, Mariana,
Diamantina etc.) foram perdendo importância, e outras ganharam grande impulso
(principalmente na Zona da Mata e no Sul das Minas).
No
fim da monografia, Xavier da Veiga faz um relato da imprensa nas Minas em 1897.
Segundo ele, dos 123 municípios que o estado tinha na época, 69 tinham
periódicos. Ouro Preto continuava com posição de destaque – seis publicações, duas
delas de grande importância: o jornal oficial Minas Gerais e a Revista
do Arquivo Público Mineiro. O Minas Gerais se destaca por ser a
única publicação importante, do século 19, que sobrevive até os dias de hoje.
Belo Horizonte, que acabava de ser inaugurada (com o nome de Cidade de Minas),
contava com quatro publicações: A Capital, O Bello Horizonte (o
primeiro jornal da cidade), Tiradentes e O Bohemio.
A
extensa Efemérides mineiras é a grande obra de Xavier da Veiga. Ele
gastou quase 18 anos de trabalho árduo para produzi-la. Em 1897, lançou-a pela
Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, em quatro volumes. A Fundação João
Pinheiro lançou em 1998 uma reedição da obra, com dois volumes, que juntos têm
1.115 páginas. No livro, Xavier da Veiga faz uma cronologia detalhada da
história mineira, mas um pouco confusa pela forma com que o autor organiza as
informações.
As
Efemeridades foram financiadas pelo governo de Minas Gerais. Já nos
termos da lei de criação do Arquivo Público Mineiro, estava prevista a produção
de "efemérides sociais e políticas". O APM seguia a linha do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que promoveu a publicação de
edições históricas.
Lima
conta que uma vez alguém procurou Xavier da Veiga querendo informações para
escrever sua biografia. A reação de Xavier da Veiga foi entregar os volumes das
Efemérides mineiras. "(...) como quem disse: Eis-me nesse monumento
pátrio." (Lima, 1991, p. 39).
Disponível em:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/o_precursor_nos_estudos_sobre_jornalismo_em_minas
Acesso em 22 de agosto de 2013.
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