O português não veio do latim! - Marcos Bagno
As
línguas são fenômenos eminentemente sociais e, portanto, políticos. A tentativa
de algumas escolas teóricas modernas de estudar a língua como uma estrutura
autônoma, abstrata, independente de seus falantes e de suas interações, redundou
em grande fracasso. Afinal, “a língua" não existe: o que existe são seres
humanos de carne e osso que interagem em situações sociais e culturais concretas
por meio da linguagem.
A
marca do político no discurso sobre a língua é evidente na tradição de estudos
da história do português. Aprendemos (e ensinamos) que “o português veio do
latim" e que, na fase mais remota, existiu uma língua chamada
“galego-português". Mas essas afirmações e esse nome tentam contornar um fato
histórico facilmente comprovável: o português é simplesmente o galego com outro
nome. Para começar, uma data: no ano de 1143 surge o reino de Portugal,
independente da coroa de Leão e Castela, à qual o pequeno território inicial
(entre o rio Douro e o rio Minho) prestava vassalagem. No entanto, quando
buscamos no dicionário Aurélio o verbete “galego-português", o que encontramos
é: "[Língua] Atestada pelo menos desde o séc. VIII, os primeiros documentos nela
conhecidos e redigidos por inteiro datam do séc XI. No séc XII Portugal, mas não
a Galiza, torna-se independente de Leão e se estende para o S., criando-se assim
uma fronteira política que, no séc. XIV, já seria também uma fronteira
linguística: ao N., o galego, e ao S., o português."
Esse
verbete exibe incoerências, a começar pelo próprio nome dado a língua. Se ela é
“atestada pelo menos desde o séc VIII", quando ainda não existia a entidade
política chamada Portugal e se somente no século XIV se estabeleceria uma
“fronteira linguística" entre o galego e o português, por que chamar a língua de
“galego-português" e não simplesmente de galego, uma vez que a entidade
político-geográfica chamada Galécia existia desde a época dos romanos?
Apenas
no século XIX é que os estudiosos portugueses vão criar uma denominação para
essa língua única em que foi produzida a rica literatura trovadoresca medieval.
Essa denominação será galego-português. Ora, esse nome não aparece em nenhum
documento antigo. Ao contrário, quando se faz alguma referência à língua da
poesia medieval, o nome que aparece é galego. O termo galego-português foi
cunhado como uma espécie de compromisso ideológico entre duas tensões: o
reconhecimento de que a língua da poesia medieval era basicamente o galego, e o
anseio, de inspiração nacionalista, de incorporar aquela produção literária ao
patrimônio cultural do povo português.
A
situação marginalizada do galego decerto contribuiu para que os portugueses do
século XIX não sentissem estímulo em reconhecer e assumir a evidência de que o
português era e é a continuação da língua galega, levada cada vez mais para o
sul, à medida que os reis portugueses expandiam seu território. Não seria digno
de um povo soberano e conquistador ter como ancestral uma língua de campônios
rudes, uma língua sem prestígio. Daí a designação galego-português. Por isso,
não é correto, do ponto de vista histórico-geográfico, afirmar, como fazem todas
as gramáticas históricas, que “o português vem do latim". O português vem do
galego - o galego, sim, é que representa a variedade de latim vulgar que se
constituiu na Gallaecia romana e na Galiza medieval.
Marcos
Araújo Bagno' (Cataguases, 21 de agosto de 1961) é um intelectual1 , professor, doutor em filologia, linguista e escritor brasileiro. É professor
do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da Universidade de Brasília, doutor em filologia e língua portuguesa pelaUniversidade de São Paulo, tradutor, escritor com diversos
prêmios e mais de 30 títulos publicados,2 entre literatura e obras técnico-didáticas. Atua mais
especificamente na área de sociolinguística e literatura infanto-juvenil, bem como questões pedagógicas sobre o ensino de portuguêsno Brasil. Em 2012 sua obra As memórias de
Eugênia recebeu o Prêmio
Jabuti.
Muito interessante!
ResponderExcluirQue bom que ainda temos professores que nos orientam nos mais diversos assuntos e este é realmente interessante.
ResponderExcluirVejo neste engano de anos que há uma questão geopolítica de dominação.
Será que a línguia portuguesa serviu estes anos todos de dominação de um povo sobre o outro?
Será que o brasileiro seria diferente em suas ações se soubessemos que não somos uma língua latina?
Penso que não.
Mas, esta informação é relevante no sentido de nossa identidade cultural e nossa individualidade como nação.
Não somos do bojo do latim, somos de origem galega.
Somos "galegos", somos individuais e não coletivos do latim.
Isto é um ato geoplítico.
Obrigado professor Marcos e ainda mais uma vez você José Milton.
Fernando Nani.