Fernando
Gabeira* - O Estado de S.Paulo
"Cuidado
com a volta do retorno."
Quem me
dizia sempre isso era Marinho Celestino, um cabeleireiro capixaba que estudou
cinema em Paris e morreu no Brasil. Não sei se queria expressar com isso a
circularidade do tempo ou se usava a expressão apenas para advertir os perigos
de uma recaída. O movimento "Volta, Lula" sempre me lembra a expressão de
Marinho Celestino: a volta do retorno, uma espécie de bumerangue.
Durante
um tempo, ele se comportou apenas como um ex-presidente. Achei que merecia o
habeas língua que sempre conferimos àqueles que já cumpriram sua tarefa. Clarice
Lispector, num belo conto chamado Feliz Aniversário, conta a história de uma
festa para a mulher que fazia 89 anos e de quem todos queriam arrancar uma
palavra. A velha permaneceu calada, apesar de muitas provocações, até que, no
final da festa, resolveu falar só isto: "Não sou surda!".
Para
mim, Lula ainda é um jovem. Desenvolvi uma tolerância a suas frases e, em certos
momentos, até me diverti com elas. Era só um ex-presidente, com direito a parar
de fazer sentido.
Agora,
que querem lançá-lo de novo à Presidência, é preciso ter cuidado com a volta do
retorno. Não me preocupa tanto que tenha dito que o julgamento do mensalão foi
80% político e 20% técnico. Lula aprendeu, ao longo destes anos, a usar os
números para tornar a mentira convincente. Se o apertarmos num debate, ele vai
conceder: "Está bem, então 79% político, 21% técnico". Ele sabe que números
quebrados convencem ainda mais que os redondos. O que me preocupou mais nessa
entrevista aos portugueses foi ele ter encarnado o espírito de salvador, um
arquétipo da nossa cultura luso-brasileira, um Dom Sebastião.
Ele
disse que, apesar do que noticiavam os jornais, TV e oposição, o povo sempre
olharia nos seus olhos e acreditaria na sua verdade. Isso implica uma visão
pobre da democracia e, sobretudo, do povo. Como se as pessoas fossem
completamente blindadas diante do debate nacional, como se não fossem curiosas,
não formassem opinião por meio da troca de ideias, como se não estivessem
constantemente reavaliando suas crenças com novos dados.
Nessa
frase de Lula, o povo só se acende com o seu olhar hipnótico e é nele que
procura a verdade, não nos fatos e nas evidências que se desdobram.
Cuidado
com a volta do retorno. A realidade mostra que as pessoas avançaram, que
valorizam melhorias materiais, mas pedem também mais do que isso. Seria
interessante para o PT e para o próprio Lula darem uma volta pelas ruas do
Brasil e tentar a fórmula olho no olho. No mínimo, vão se
desapontar.
Lula não
conseguiu, com olhar magnético, convencer o povo brasileiro de que a Copa foi
uma decisão acertada num país com tantas dificuldades. Tanto ele quanto Gilberto
Carvalho ficam perplexos diante das críticas. Como é possível não celebrar a
Copa no Brasil?
Neste
caso, a fantasia de uma identificação mítica com o povo vai para o espaço. Como
restaurá-la? Com olho no olho?
O olhar
número cinco falhou. A única saída é partir para outros truques, como, por
exemplo, fazer com que os copos se movam sozinhos nas mesas, como naquelas
sessões espíritas no princípio do século 20.
Na
entrevista em Portugal, Lula procurou explicar também por que o povo olhava no
seu olho e o apoiava. Mencionou, mais uma vez, a história da mãe que o
aconselhou a andar sempre de cabeça erguida. Um conselho de mãe e o olho no olho
são os talismãs que o protegem de todas as acusações, que lhe dão força,
inclusive, para proteger em seu governo grandes e pequenos bandidos da política
nacional. Não e à toa que alguns ratos começam a abandonar o navio da
candidatura Dilma. Eles anseiam também por migalhas desse poder de Lula, querem
se esconder embaixo do manto protetor.
E Dilma,
ou o fantasma dela, apareceu na televisão. Gostei da maquilagem, do tom da pele,
embora para muitos ela estivesse um pouco pálida. Os profissionais trabalharam
bem no rosto, no penteado e mesmo nas ideias do texto. Você querem mudança? Nós
somos a mudança.
Está
chegando um tempo em que o abuso das palavras perde sua elasticidade. Um tempo
em que a onipotência de um suposto magnetismo tem de descer ao mundo dos
debates, do choque de ideias, da avaliação permanente dos rumos do País. É o
ocaso da magia. Da cartola, saem apenas os velhos e combalidos coelhos: aumento
da cesta básica, modesta redução no Imposto de Renda.
O
naufrágio se define com a perda do horizonte. Mesmo o famoso mercado parece
esperar a derrota de Dilma. Quando cai nas pesquisas, a Bolsa sobe. Mas nem
sempre o mercado tem razão diante da política. Senão, substituiríamos o debate
parlamentar pelo grito dos corretores na Bolsa. Realizar uma política social
generosa, muitas vezes, bate de frente com o mercado. Só é possível levá-la
adiante, de fato, num quadro econômico de crescimento sustentável. E parece
existir no mercado a compreensão de que a atual política econômica está
fracassando, de que Dilma foi má administradora em campos vitais, como a
energia, e incompetente para deter a degradação da Petrobrás.
Não sei
como Dilma e Lula vão se apresentar na campanha. Ele vai precisar de uma lente
de contatos para mudar a cor dos olhos, em caso de necessidade. Dilma não poderá
repetir apenas o que escrevem os marqueteiros. Ela apenas registrou que os ratos
abandonavam o barco, mas não se perguntou em nenhum momento por que o barco
começa a afundar.
No
debate, os dois, cada um com seu estilo, vão ter de explicar o que fizeram do
Brasil, que se vê agora sugado pela corrupção, gastando fortunas com as obras de
uma Copa trazida pela visão megalomaníaca de Lula. Na África do Sul, ele até
convidou atletas estrangeiros para se mudarem para o Brasil porque haveria tanta
competição esportiva que nossas equipes não seriam capazes de disputar
todas.
Nada
como esperar a campanha presidencial de 2014. Por enquanto, o discurso do
governo é 80% mentira e 20% malandragem.
*Fernando
Gabeira é jornalista.
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